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Era uma encomenda das grandes: 200 doses de vacinas contra a Covid-19. Contas feitas, a 30 dólares por dose, os donos do site já podiam sonhar com os milhares que vinham a caminho, sem fazer ideia do pesadelo que tinha apanhado boleia: agentes disfarçados. Três jovens entre os 22 e os 25 anos eram o cérebro por detrás de uma página na internet igual à página oficial da farmacêutica Moderna, a modernatx.com. Os mais distraídos dificilmente notariam que o domínio deste site fraudulento criado para supostamente vender vacinas era diferente: moderntx.shop. Mas agora quem carregar neste link vai apenas encontrar logótipos de entidades judiciais dos Estados Unidos e um aviso em letras garrafais: “ESTE DOMÍNIO FOI APREENDIDO”.
A investigação que travou este site fraudulento foi relativamente rápida: em menos de um mês, a principal secção de investigação do Departamento de Segurança Interna norte-americana sentou Kelly Lamont Williams, Olakitan Oluwalade e o seu primo Odunayo Baba Oluwalade frente a um juiz. E isso foi possível devido à estratégia adotada. Logo que receberam a denúncia, dia 11 de janeiro, os agentes especiais começaram por tentar perceber se a queixa tinha sequer fundamento, simulando uma encomenda de vacinas.
Às 15h58 desse dia, um agente encoberto abriu o site fraudulento e clicou no link que permitia “comprar uma vacina Covid-19 antes do tempo”, como era publicitado, segundo descreve o comunicado do Departamento de Justiça dos Estados Unidos. O link direcionava para um número de telefone vinculado a uma conta numa aplicação de mensagens encriptadas. Foi para lá que o agente enviou uma mensagem. Cerca de duas horas mais tarde, teve resposta: pediam-lhe que desse um endereço de email — e o agente obedeceu.
A partir daqui, o processo foi mais rápido. Apenas quatro minutos depois, caía no endereço fornecido pelo Departamento de Segurança Interna um email vindo de sales@modernatx.shop a dar as boas-vindas ao alegado cliente. No texto era ainda feita uma breve descrição da suposta farmacêutica e uma explicação dos requisitos para o armazenamento da vacina. Após vários emails trocados, lá chegaram as indicações concretas sobre o pagamento e a entrega. O agente disfarçado de cliente comprou 200 doses, num total de seis mil dólares — metade do valor seria pago no momento da encomenda e o restante na entrega, que nunca chegaria a acontecer. O agente cumpriu as ordens e transferiu três mil dólares para a conta indicada, no nome de Kelly Lamont Williams, evitando assim que desconfiassem da emboscada.
Só que, quatro dias depois, o suposto cliente apareceu à porta do falso vendedor. Os investigadores fizeram buscas na casa do jovem de 22 anos e aproveitaram o seu telemóvel para trocar mensagens com os restantes membros do esquema e assim recolher mais provas:
— Hey! Para onde queres que mande o pão? — escreveu o agente, fazendo-se passar por Williams, numa referência ao dinheiro já ganho com aquela encomenda.
— Manda-me algum pelo Zelle e algum pelo Cash App — respondeu Odunayo Baba Oluwalade, referindo-se a aplicações de pagamentos online.
Acusados no início de fevereiro de conspiração e fraude eletrónica, os três suspeitos arriscam agora 20 anos de prisão. O caso não terá no entanto apanhado os investigadores de surpresa.
Os alertas para crimes relacionados com vacinas contra a Covid-19 começaram a chegar logo em dezembro, numa altura em que a vacinação arrancou em todo o mundo: venda de vacinas que não existem em troca de dinheiro ou para ataques de phishing, isto é, roubar dados pessoais; e, mais recentemente, vacinas contrafeitas — uma verdadeira pandemia paralela de crime que, até ao momento, parece não ter atingido Portugal. Mas, em todo o mundo, segundo o secretário-geral da Interpol, Jürgen Stock, em declarações à revista Time, já gerou milhares de milhões de dólares em lucros ilegais. “Desde o início da pandemia, os criminosos atacaram os medos das pessoas para ganhar dinheiro rápido. As vacinas falsas são as mais recentes nesses golpes“, alertou aquela polícia internacional em comunicado.
Na darknet ou fora dela, a criação de sites falsos que alegam ser de organizações legítimas tem sido uma “tendência emergente”, segundo a Interpol. Usando logótipos de farmacêuticas conhecidas, estes sites falsos oferecem vacinas em troca de dinheiro, por vezes em moedas virtuais. Ainda em dezembro, a Europol divulgava um exemplo de um anúncio que circulava na darknet: cada vacina, alegadamente produzida pela Pfizer e pela BioNTech, custava 0,06882 bitcoins — o que à data, dependendo da altura do mês de dezembro, valia entre 1.075 e 1.638 euros, mas que agora vale mais de três mil euros. O anúncio indicava ainda que faziam entregas em qualquer país.
Uma empresa de segurança cibernética, a Check Point, identificou março como o mês em que este fenómeno explodiu. O diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS) já veio até alertar que os grupos criminosos estão a aproveitar-se da “imensa procura” para venderem “produtos falsificados” e apelou às pessoas para que “não comprem vacinas”. “Qualquer venda suspeita de vacinas deve ser denunciada às autoridades nacionais”, disse Tedros Adhanom Ghebreyesus, numa conferência de imprensa no passado dia 26 de março.
Covid-19. OMS adverte para venda de vacinas falsas ou adulteradas por grupos criminosos
Cerca de 30% das vacinas vendidas na darknet parecem ser verdadeiras. Maioria dos anúncios servem para roubar dinheiro ou dados pessoais
Uma equipa de investigadores da empresa de segurança cibernética Check Point, que começou a monitorizar esta tendência desde que ela surgiu, revelou à BBC que o número de anúncios quase triplicou desde o início de janeiro, para mais de 1.200. Segundo a sua análise, a vacina mais barata à venda é a da AstraZeneca, por 500 dólares. Segue-se a da Sputnik V e a da Johnson & Johnson, por 600 dólares. A mais cara é a da Sinopharm, que custa 750 dólares. Já quanto à origem dos vendedores, os investigadores verificaram que parecem ser dos Estados Unidos, Reino Unido, Espanha, Alemanha, França e Rússia, tendo sido encontrados anúncios em várias línguas.
Oded Vanunu, chefe da equipa de investigadores, contou à BBC que a empresa comprou uma dose da vacina da Sinopharm a um fornecedor por 750 dólares, como parte da investigação. Até hoje, ainda não a recebeu. A equipa acredita que, neste caso, este vendedor apenas procurava burlar os interessados. No entanto, alertam que há outros que podem estar mesmo a vender vacinas supostamente reais — roubadas ou contrafeitas.
De facto, por vezes, por detrás destes anúncios não está qualquer produto, nem mesmo contrafeito: servem apenas para burlar as vítimas, para roubar dados pessoais dos clientes ou levar a cabo ataques informáticos. “Além de abrir os seus computadores a ataques cibernéticos ao tentar comprar supostas vacinas Covid-19 online, as pessoas também correm o risco de ter a sua identidade roubada”, lembra a Interpol no mesmo comunicado.
Covid-19. Interpol alerta para compra de vacinas falsas online
Outros anúncios, como detalha esta organização internacional da polícia, enganam os clientes pedindo, em troca da vacina, que façam doações de caridade — que não são nada mais do que mecanismos para obter dinheiro. É o caso de um dos anúncios encontrados por uma empresa de segurança cibernética que também realizou um estudo sobre este tema, a Kaspersky. “As suas doações ajudarão a salvar vidas. Por isso, mostre a sua generosidade”, lia-se num anúncio que pedia 81 dólares em bitcoins por dose. O interessado, além de indicar o nome e morada, tinha de dizer doenças conhecidas de forma a conseguir a vacina.
No entanto, mais recentemente, começaram a surgir casos em que, efetivamente, há uma vacina que é entregue: ou são vacinas verdadeiras roubadas ou vacinas contrafeitas, que não são testadas, regulamentadas ou verificadas quanto à sua segurança. “Com grupos criminosos que produzem, distribuem e vendem vacinas falsas, os riscos para o público são claros: podem incluir a compra de um produto que não só não protege contra a Covid-19, como representa um sério risco para a saúde se ingerido ou injetado“, avisa a Interpol.
O estudo realizado pela Kaspersky conclui contudo, a partir de uma análise a 15 mercados na darknet, que cerca de 30% das vacinas parecem ser verdadeiras. É aliás algo que é percetível pelos comentários de compradores, satisfeitos com a encomenda, deixados nas páginas de vendas:
“Há elementos que sugerem que alguns desses vendedores estão a fornecer doses reais. Há fotos de embalagens e certificados médicos. Parece que algumas destas pessoas têm acesso interno a instituições médicas“, explicou Dmitry Galov, o investigador que liderou o estudo da Kaspersky à CBS. O próprio dirigente da OMS já tinha alertado que “há vacinas que estão a ser desviadas e reintroduzidas na cadeia de distribuição” sem a adequada conservação de frio. “Vários ministérios e autoridades de saúde receberam ofertas suspeitas [de vacinas]”, adiantou Tedros Adhanom Ghebreyesus.
“Cenário” com vendas de vacinas em Portugal está “relativamente tranquilo”. E PJ acredita que se vai manter assim
Apesar de haver registo de burlas relacionadas com a vacinação, para já, Portugal parece não ter sido atingido por esta pandemia de venda falsa ou ilegal de vacinas. “O cenário tem estado num patamar que consideramos relativamente tranquilo. Essa questão para já, em Portugal, não se tem colocado”, disse ao Observador o Diretor Nacional Adjunto da Polícia Judiciária, Carlos Farinha. Ainda assim, alerta que é preciso manter “alguma atenção” sobre circuitos paralelos de venda de vacinas. “A expectativa é que não aconteça, porque se têm a noção que estamos a trabalhar em sede de uma resposta de um sistema de saúde público”, rematou.
Apesar de a GNR ter registado, desde o início do ano, 11 crimes de burla relacionados com a vacinação, nenhum deles diz respeito à venda de vacinas na internet ou mesmo presencialmente. Em resposta ao Observador, esta força de segurança militarizada explicou que foram detetadas formas de atuação em que “o burlão aborda a vítima dizendo que irá ser notificada para ser vacinada e, a meio do diálogo, diz que necessita de desinfetar a moradia” com o objetivo de a roubar.
Houve ainda casos em que os suspeitos abordaram a vítima junto da sua residência, para “saber se já tinha a vacina contra a Covid-19”. “No seguimento do diálogo, pergunta se a vítima tem notas de 20 e de 50 euros, argumentando que essas notas necessitam de ser trocadas e ficarão fora de circulação”, explica a GNR. Desde o início do ano já “foram detidas em flagrante duas mulheres de 30 e 37 anos, no distrito do Porto, que se fizeram passar por médicas para aceder ao interior da residência da vítima e furtar bens”.
Polícia desmantelou rede na China que traficava vacinas falsas (como soro fisiológico) para África do Sul. É “o ouro líquido de 2021”
No início do mês, a Interpol anunciou o primeiro caso confirmado de vacinas falsas traficadas entre continentes. Em fevereiro, a agência estatal chinesa Xinhua noticiava a detenção de mais de 80 pessoas e a apreensão de cerca de três mil doses de vacinas falsas. Os suspeitos estariam a lucrar com o fabrico de vacinas contrafeitas já desde setembro de 2020.
Covid-19. Milhares de vacinas falsas apreendidas na África do Sul e China
Na altura, a polícia sabia que o objetivo era enviar o produto para o exterior, mas não conseguiu apurar com certeza qual era o destino das vacinas — embora tivesse suspeitas. Só no início de março é que a Interpol revelou que era África do Sul. A rede criminosa na China — com atividades em várias zonas como Pequim, Jiangsu ou Shandong— enchia as ampolas com soro fisiológico para contrabandear para aquele país, onde seriam vendidas como vacinas contra a Covid-19, de acordo com a polícia local e agentes da Interpol citados pela Time.
As suspeitas de que o destino final era África do Sul começaram a surgir ainda na sequência da operação levada a cabo na China. Mas adensaram-se com um “carregamento suspeito” detetado no Aeroporto Internacional Oliver Tambo, em Gauteng, que a polícia já estava a seguir. “Os nossos agentes chegaram lá e viram seringas pré-cheias, com rótulos escritos em chinês. As duas pessoas que estavam no local, o dono do armazém e o dono chinês do carregamento, foram presos”, contou Mlunghisi Wondo, da Autoridade Reguladora de Produtos de Saúde da África do Sul ao El País. A venda destas vacinas falsas foram anunciadas numa rede social chinesa e importadas para Singapura, como sendo “injeções cosméticas”, explicou ainda Wondo.
China desmantela rede que vendia vacinas falsas feitas a partir de água mineral e soro fisiológico
Num armazém na cidade de Germiston, na província de Gauteng, a norte da África do Sul, a polícia encontrou alguns dos frascos que tinham viajado mais de 11 mil quilómetros para ali chegar. “Cerca de 400 ampolas — o equivalente a cerca de 2.400 doses — com a vacina falsa foram encontradas num armazém em Germiston, Gauteng, onde os agentes também recuperaram uma grande quantidade de máscaras falsas e prenderam três cidadãos chineses e um da Zâmbia”, detalhou a Interpol em comunicado.
O continente africano é especialmente vulnerável aos crimes relacionados com a vacina. John-Patrick Broome, analista de inteligência criminal da Interpol na África Oriental, explicou ao El País que a “falta de regulamentação” e a “corrupção a vários níveis” faz com que os medicamentos contrafeitos entrem facilmente no mercado africano. Um estudo feito pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2018 revelava que, entre 2013 e 2017, quase metade de todos os medicamentos falsificados ou de baixa qualidade apreendidos foram encontrados em África. “A maioria (42%) vem da região africana, 21% da região americana e 21% da região europeia”, lia-se no comunicado divulgado na altura.
Na sequência desta operação, o secretário-geral da Interpol alertava que esta era “apenas a ponta do iceberg no que diz respeito a crimes relacionados com a vacina contra a Covid-19″. À Time, Jürgen Stock apelidava as vacinas falsas do “ouro líquido de 2021”.