Agora é a vez de André Ventura dizer: “Não é não.” O líder do Chega anunciou que o partido está fora das negociações para o Orçamento do Estado, justificou a decisão com as cartas secretas trocadas entre Governo e o PS (que ambos desmentiram) e garante que não há volta a dar. Os riscos eleitorais de uma eventual crise política (a bancada do Chega poderia minguar consideravelmente se o partido fosse corresponsabilizado pela queda do Governo) passaram para segundo plano. A estratégica assenta agora na responsabilização de Luís Montenegro e em mostrar como optou pelo PS como um “parceiro preferencial” em detrimento de um partido de direita.
A hipótese de eleições antecipadas resultantes de uma crise política sempre foi contemplada, pelo menos no plano teórico, pelo Chega. No entanto, e apesar de André Ventura ter reiterado várias vezes que o partido não tem medo de ir a votos, seja qual for a circunstância, este cenário foi sempre visto com alguma cautela entre as figuras mais relevantes do partido, até porque existe a suspeita fundada de que novas eleições podem fazer recuar eleitoralmente o Chega — basta ver o que aconteceu nas últimas europeias.
Além disso, existe ainda quem, no Chega, acredite que esta atitude mais confrontacional e radical de André Ventura pode hipotecar em definitivo “o eleitorado do centro que um dia o poderá levar a primeiro-ministro”. Ainda em julho, o Observador dava conta desse ceticismo que ia lavrando no Chega. “Temos de ser responsáveis. Se não o fizermos, ficaremos numa situação política muito delicada. Passaríamos uma imagem de irresponsabilidade. Chegámos à idade adulta e temos de ser adultos“, defendia um elemento influente do partido.
Apesar de tudo, esta era e é uma posição minoritária no partido. E mesmo que não fosse, André Ventura resolveu a questão dando por terminadas as negociações para o Orçamento do Estado antes mesmo de conhecer o documento. Pesados os argumentos, o líder do Chega entendeu que o risco de ser percecionado como um partido que se deixou humilhar pelo “nã0 é não” de Montenegro é maior do que ter um resultado menos positivo nas próximas eleições legislativas. No limite, será um passo atrás para dar dois à frente.
Lavar as mãos da crise
“Existe a perfeita consciência de que a bancada pode diminuir”, diz ao Observador um destacado dirigente do Chega. “Mas depois aumenta”, relativiza a mesma fonte. “No fundo agora é André Ventura a dizer ‘não é não’”, atira um dirigente do partido, referindo-se ao “não é não” de Montenegro que tantas vezes tem deixando o Chega a falar sozinho.
“É impossível fazer um Orçamento do Estado que agrade ao PS e ao Chega. Se o Governo escolheu esse parceiro ficámos arredados das negociações”, remata um alto dirigente do Chega. Mais do que isso, fonte da bancada parlamentar do Chega está segura de que a esmagadora maioria dos deputados concorda com a decisão tornada pública por Ventura. “Havia quem preferisse o voto a favor, mas a atitude arrogante do Governo acabou por levar a mudanças de opinião.”
No limite, algumas das principais figuras do partido continuam acreditar que Pedro Nuno Santos salvará Luís Montenegro e que o cenário de eleições antecipadas será evitado, o que retira pressão e facilita a rutura consumada por André Ventura. No melhor dos cenários (Pedro Nuno dá a mão a Montenegro), o Chega prepara-se para assistir a um bloco central e para festejar a “liderança da oposição”.
Esta quarta-feira, o líder do Chega fez esse mesmo ensaio. Voltando a dizer ter sido enganado por Montenegro, jurando que era “irrevogável” a sua saída da mesa das negociações, Ventura disse que o Governo está agora obrigado a negociar com o PS. “Escolheu o seu parceiro e deve levar até ao fim estas negociações com o seu parceiro”, atirou Ventura, deixando uma frase venenosa: “Saibam agora dar a estabilidade política que o país precisa. Caso contrário, serão os únicos responsáveis pela crise política que se avizinhará no próximo mês.”
Era só preciso atar um nó que poderia prejudicar a imagem do Chega: garantir que a redução de impostos que o Governo quer aplicar à margem da discussão orçamental (IRS Jovem e IRC) tem margem para ser aprovada com os votos do Chega — assumir o contrário seria deixar a descoberto uma fatia importante do eleitorado do partido e poderia ser facilmente explorado pelo PSD. “Se o Governo quiser retirar do Orçamento, da negociação orçamental, e quiser fazer um retificativo, um documento isolado, ou um projeto legislativo diferenciado, onde constam os acordos a que chegou com as forças profissionais, ou em matéria de IRS e de IRC”, o Chega irá aprovar, prometeu André Ventura.
Mesmo fazendo fé de que na 25.ª hora Pedro Nuno ajudará Montenegro, no Chega garante-se que o partido está pronto para a ir a votos — também em julho, o Observador contava como Ventura transmitiu aos deputados no Parlamento, numa reunião à porta fechada, que o risco de eleições antecipadas era real e que todos deveriam continuar a trabalhar afincadamente junto dos eleitores e das estruturas para manter o partido vivo e preparado.
“A gota de água”
A troca de informações entre Governo e PS foi utilizada por André Ventura para pôr um ponto final nas negociações que iriam ser retomadas em setembro. O líder do Chega disse sentir-se “enganado” e “traído pelo primeiro-ministro” e não recua um milímetro: apesar de tanto Luís Montenegro como Pedro Nuno Santos já terem publicamente desmentido a existência de “negociações secretas”, Ventura vai garantindo que não está disposto a mudar de ideias.
Em julho, Pedro Nuno Santos enviou uma carta a Luís Montenegro em que exigia a prestação de informação sobre as contas públicas. O primeiro-ministro não acedeu ao pedido do socialista. Mais recentemente, já no final de agosto, o Governo fez chegar à sede nacional do PS documentos que incluíam a despesa estimada para as medidas já aprovadas este ano e a despesa prevista para as novas medidas a inscrever no Orçamento do Estado de 2025 — informação que faria chegar mais tarde a todos os partidos com assento parlamentar. Montenegro negou que se tratassem de “cartas secretas” e Pedro Nuno confirmou que não existia qualquer tipo de negociação. Ventura não se deixa convencer.
De resto, dirigentes e deputados do Chega ouvidos pelo Observador confirmam que a notícia sobre as alegadas negociações em curso entre Luís Montenegro e Pedro Nuno Santos foram mesmo o fator mais relevante para que Ventura comunicasse ao país estar fora da discussão. “A situação do PS foi a gota de água”, resume um deputado, que fala numa “facada” depois das “várias tentativas de aproximação” do Chega ao Governo.
Aliás, o Chega não só não entende o “silêncio absoluto” do Governo durante o verão, como considera ter tido uma atitude “proativa” que foi ignorada por completo por Montenegro. Mais uma vez. “Tínhamos colocado a prerrogativa do referendo à imigração. Luís Montenegro disse que não respondia e Hugo Soares veio dizer que as condições eram desadequadas. É porque o Governo não quer negociar”. As notícias sobre a troca de informações entre Montenegro e Pedro Nuno fizeram o resto e motivaram a última decisão de Ventura.
Chega agarra imigração a pensar no futuro
No arranque de um novo ciclo político, André Ventura procurou capitalizar uma das bandeiras do partido para chamar a atenção do Governo, deixando certezas de que o tema interessa ao país e às pessoas, e de que era preciso ouvir o povo. Sugeriu um referendo à imigração, marcou uma manifestação contra a “imigração descontrolada” e propôs um reforço financeiro para controlo de fronteiras em Portugal e a revisão dos subsídios e apoios pagos a estrangeiros.
Consciente que Montenegro dificilmente (para dizer o mínimo) aceitaria tal condição, e numa perspetiva de futuro, Ventura procurou conquistar mais espaço junto do eleitorado de direita e alimentar a narrativa de que, depois de chegar ao Governo, o PSD preferiu aproximar-se do centro e da esquerda e que o Chega é o único preocupado com temas caros a esse espaço político.
Entretanto, a notícia do Expresso sobre as “cartas secretas” entre Montenegro e Pedro Nuno serviu de gatilho a Ventura. O líder do Chega decidiu escrever uma carta ao primeiro-ministro para dizer que estava fora das negociações e acusar o primeiro-ministro de ter traído o “eleitorado de direita”. Ainda que não tenha sido possível ter acesso ao documento na íntegra, conhecem-se apenas algumas passagens do texto. “Como o senhor primeiro-ministro bem sabe, tínhamos o compromisso de uma negociação séria e bilateral, construtiva à direita, que o seu Governo colocou irrevogavelmente em causa ao preferir a negociação secreta com os socialistas”, escreveu o líder do Chega.
“Depois de todo o percurso, público e não público, realizado pelos dois partidos, quem poderá dizer que fica com a consciência tranquila com esta rutura? Quem poderá dizer que sabe que fez tudo o possível para que as coisas funcionassem e o espectro do regresso do socialismo não fosse real? Acho que, ambos o sabemos, só eu…”, acrescentou André Ventura.
Ora, de acordo com fonte do gabinete do primeiro-ministro, e apesar de terem passado mais de 48 horas desde o momento em que Ventura fez saber da carta a Montenegro, ainda não chegou qualquer missiva a São Bento. Mais a mais, a mesma fonte oficial nega categoricamente terem existido “negociações secretas” entre Montenegro e Pedro Nuno Santos. “Não houve qualquer troca de correspondência ou negociação entre o senhor primeiro-ministro e o secretário-geral do PS durante o mês de agosto”, remata fonte oficial.
Pedro Nuno pediu ao Governo previsões orçamentais e cenário para 2025 em carta enviada a 29 de julho