“Hoje, penso em como podíamos ter feito as coisas de forma diferente”. Foi um Wolfgang Schäuble assumidamente “triste” que, numa das suas últimas entrevistas, em 2019, reconheceu que talvez tenha sido demasiado dura a posição assumida pelo governo alemão na crise da dívida europeia. O antigo ministro das Finanças da Alemanha, que nunca teve pejo em assumir o papel de “polícia mau” nessa crise (permitindo que Angela Merkel pudesse, a espaços, vestir a pele de “polícia bom”), morreu esta terça-feira, “tranquilamente” em sua casa, aos 81 anos.
Extraordinariamente popular na Alemanha, a imagem de Wolfgang Schäuble no resto da Europa ficará para sempre associada à receita da austeridade que foi aplicada aos países que perderam o acesso normal aos mercados de dívida a partir de 2010 e tiveram de pedir ajuda internacional. Foi essa mesma receita que o antigo ministro das Finanças admitia que podia ter sido aplicada de uma forma um pouco diferente – embora não tenha explicado exatamente como. “Maior despesa pública não equivale automaticamente a um maior contentamento” entre as pessoas, reiterou, nessa entrevista ao Financial Times em 2019.
O primeiro país a cair foi a Grécia, em maio de 2010, poucos meses depois de ser revelado que a dívida pública era, afinal, muito maior do que se pensava. O segundo país a pedir ajuda à troika (Comissão Europeia, BCE e FMI) foi a Irlanda, no final de 2010, pressionada pelo estouro do setor financeiro. Muito mais tarde, em 2012, também Espanha viria a pedir (e receber) ajuda internacional pela mesma razão – a fragilidade dos bancos – mas nessa fase a assistência financeira já foi concedida sem que aos espanhóis fosse aplicada a mesma austeridade que tinha sido imposta aos irlandeses.
Pelo meio, na primavera de 2011, Portugal. Ao contrário de Espanha, Portugal não foi capaz de aguentar a pressão nos mercados financeiros até ao momento em que o então presidente do BCE, Mario Draghi, veio, em julho de 2012, garantir que o banco central estaria disposto a “fazer tudo o que fosse necessário” para preservar a união monetária. Esse discurso decisivo de Draghi só foi possível, porém, no contexto da decisão que tinha sido tomada pouco tempo antes: a decisão, tomada por Merkel e o francês Sarkozy em 2012, de manter a Grécia dentro da zona euro.
Três anos depois, porém, o problema grego voltaria a agudizar-se e foi nessa altura, em que a zona euro viveu a maior crise existencial da sua história, que o então ministro alemão da Finanças assumiu maior protagonismo – fazendo o tal papel de “polícia mau” para que Angela Merkel pudesse aparecer publicamente como alguém (comparativamente) mais condescendente. Foi no início de 2015, quando Alexis Tsipras e o partido Syriza foram escolhidos pelos gregos para liderar o governo de Atenas.
Atenas já tinha beneficiado de um perdão de parte da dívida que estava na mão de investidores privados, no segundo resgate (2012). Mas, nessa altura, ficou intacto aquilo que era devido aos parceiros europeus porque anular essas dívidas equivaleria a uma “transferência” que era estritamente proibida pelas regras da união monetária. Com Tsipras e o seu excêntrico ministro das Finanças, Yanis Varoufakis, a Grécia ia tentar não só atenuar a restrição orçamental do programa de ajustamento como, também, obter um perdão da dívida por parte dos parceiros europeus.
Foi aí, em julho de 2015, que Schäuble, irritado pelo facto de o novo governo grego ter “destruído todos os progressos que vinham sendo feitos na Grécia“, apareceu com uma proposta que, se tivesse sido aprovada, teria tido consequências totalmente imprevisíveis: uma saída da Grécia da zona euro, por alguns anos (cinco).
Para o então ministro das Finanças da Alemanha, a melhor forma de, no longo prazo, preservar a união monetária era não ceder às exigências do governo de Atenas, porque isso poderia trazer consigo o “moral hazard” (o risco moral) que, em termos futebolísticos, equivale à ideia perigosa de “beneficiar o infrator“. Em termos simples: porquê manter o rigor orçamental e fazer reformas estruturais quando o resultado da atitude contrária (despesismo e pouco estímulo ao progresso económico) acaba por ser apenas receber um perdão de dívida sem qualquer punição associada? Para o alemão, alimentar este moral hazard, isso sim, é que seria a derradeira ameaça para a união monetária.
Com aquela proposta para tirar a Grécia da zona euro, Wolfgang Schäuble estava a assumir, nesse momento, que a pertença à zona euro era, afinal, “reversível”, contrariando aquilo que tinha sido dito três anos antes por Mario Draghi. Aliás, a relação com o italiano, que é frequentemente celebrado como o líder que salvou a zona euro, foi sempre muito conturbada. Não se sabe exatamente aquilo que o então presidente do BCE terá dito ao alemão, mas fez manchetes a resposta que Schäuble deu ao italiano: “O senhor toma-me por algum tonto?”
A proposta acabaria por não ser aprovada. Angela Merkel acabou por considerar que a Grécia só deveria poder sair do euro caso o pedisse – e, como os gregos não pediram, Merkel acabou por descartar a proposta do seu ministro das Finanças. Schäuble, embora até ao fim se tenha assumido como “teimoso”, também garantiu sempre ser alguém com uma lealdade inexcedível, razão por que acatou a decisão de Merkel.
Mais tarde, viria a revelar que chegou a ter momentos em que esteve prestes a bater com a porta. Quando se decidiu que a Grécia iria ter novo pacote de resgate e ia continuar na zona euro, nessa manhã o ministro esteve “muito perto” de abandonar o cargo. Mas não o fez e ainda permaneceu no cargo de ministro das Finanças mais dois anos, até 2017.
Antes de ser o “arquiteto” da austeridade, foi um dos arquitetos da reunificação das Alemanhas
Após o acordo para o terceiro resgate à Grécia, Schäuble revelou que, apesar de a sua proposta não ter sido aceite, recebeu uma enorme manifestação de apoio por parte dos cidadãos. “A minha caixa de correio [e-mail] encheu completamente e 90% das mensagens eram de pessoas a dizerem que me apoiavam. Nunca tinha sentido tamanha onda de apoio“, afirmou Wolfgang Schäuble, numa entrevista à revista Der Spiegel.
Esse foi um sinal da enorme popularidade de que sempre gozou este ministro, que passou mais de 50 anos no parlamento alemão, o Bundestag. Nascera em plena Segunda Guerra Mundial, a 18 de setembro de 1942, em Friburgo. E, depois de começar a carreira profissional como funcionário da administração tributária, foi eleito deputado em 1972. Chegaria a presidente desse mesmo Parlamento, em 2017, depois de sair do Ministério das Finanças, e permaneceria no cargo até 2021.
A primeira parte da carreira política dedicou-a às negociações da reunificação das duas Alemanhas. Foi decisivo nesse processo porque, quando a reunificação aconteceu, em outubro de 1990, Schäuble era ministro da Administração Interna de Helmut Kohl (o chanceler de quem, antes, tinha sido chefe de gabinete). Poucos dias depois, porém, foi vítima de uma tentativa de assassinato quando um homem com historial de problemas mentais disparou três vezes sobre ele num comício.
Os médicos chegaram a temer o pior mas conseguiram salvá-lo. Ficou, porém, paralisado, necessitando de uma cadeira de rodas para o resto da vida. E também foi baleado na cara, razão por que foi sujeito a uma intervenção plástica. Poucas semanas depois, estava de volta ao trabalho e, em 1991, torna-se líder parlamentar do partido da União Democrática Cristã (CDU), sob a liderança de Kohl.
Helmut Kohl acabaria por perder as eleições em 1998, para Gerhard Schröder. Foi o fim de uma era: Kohl tinha sido chanceler durante 16 anos e saiu, também, da liderança do partido. Quem lhe sucedeu foi Wolfgang Schäuble que, porém, não ficaria muito tempo como líder da CDU: em fevereiro de 2000, viu-se envolvido num escândalo relacionado com financiamento partidário e, em particular, com contribuições feitas por um negociante de armas chamado Karlheinz Schreiber.
Schäuble garantiu que nunca fez qualquer falsificação dos registos do financiamento do partido nem teve qualquer outra má conduta. Admitiu, porém, ter-se reunido com Karlheinz Schreiber e ter recebido dele um donativo que não foi declarado de acordo com as regras. Demitiu-se, portanto, da liderança da CDU e foi aí que surgiu… Angela Merkel, que ao tornar-se chanceler viria a repescá-lo para voltar ao “seu” cargo de ministro da Administração Interna e, mais tarde, para ministro das Finanças.
O “bom aluno” português e Centeno como o “Ronaldo do ECOFIN”
Depois da dureza com que exigiu de Portugal o empenho no cumprimento do programa da troika, Schäuble passou a utilizar o caso português para mostrar como as políticas de austeridade podiam ter sucesso, sobretudo à medida que a economia começou a recuperar a partir de 2013. Lisboa era o contraste perfeito com o desespero que muitos alemães sentiam em relação a Atenas.
Foi nessa fase que, sob a liderança de Vítor Gaspar nas Finanças, o País vestiu a pele de “bom aluno” da ortodoxia alemã. Uma imagem de Gaspar, debruçado numa reunião do ECOFIN para conseguir falar com Schäuble, foi criticada em Portugal por mostrar o ministro português numa posição “inclinada e subserviente” – um comentário que ignorava o facto de Schäuble se movimentar numa cadeira de rodas.
Quando caiu o (segundo) governo de Passos Coelho e a “geringonça” de esquerda tomou o poder, Schäuble viu a vida a andar para trás. “Encorajamos fortemente os nossos colegas portugueses a não se desviarem do rumo bem-sucedido que vinha sendo seguido“, afirmou o ministro alemão das Finanças no início de 2016, momento em que “os mercados ficaram novamente nervosos” em relação a Portugal, que estava a ter dificuldades a ter a aprovação da Comissão Europeia para o primeiro orçamento do Estado.
Mais tarde, ainda em 2016, Schäuble viria a revelar que, nessa altura, alertou Mário Centeno para o risco de uma confrontação duradoura com Bruxelas. “Eu disse-lhe [a Centeno] que se seguissem esse caminho iriam correr um grande risco. E eu não correria esse risco“, disse o alemão em declarações reproduzidas pela Bloomberg.
Os bons resultados orçamentais dos anos seguintes, numa conjuntura económica (e monetária) favorável, acabaram por convencer Wolfgang Schäuble ao ponto de, em 2017, este ter feito vários elogios à forma como, na sua ótica, o País manteve o rumo nos anos seguintes, os anos do chamado “pós-troika”. Em maio de 2017, Schäuble disse que “há 12 meses era tudo tão diferente. Portugal estava à beira das sanções económicas da União Europeia e o sucesso do seu novo Governo de coligação de Esquerda estava longe de ser assegurado. Hoje, já não viola as regras orçamentais da União Europeia e prepara-se para pagar antecipadamente 10 mil milhões de euros ao FMI”.
Foi nessa altura que Schäuble chamou a Centeno “o Ronaldo do ECOFIN”, uma expressão citada pelo jornal Politico.eu mas que fonte oficial de Schäuble viria a confirmar.
Na altura, o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa comentou que “quem quer que disse isso, por uma vez não pensou mal“. Na morte de Schäuble, o mesmo Marcelo Rebelo de Sousa enviou uma “mensagem de sentidas condolências” ao Presidente alemão, dizendo que “Wolfgang Schäuble será recordado pela marca indelével que deixou na história da Alemanha ao longo do seu percurso parlamentar de mais de 50 anos, tendo desempenhado um papel fundamental na reunificação do país, e pelo seu importante contributo para a integração europeia”.
A imigração como causa do populismo e as “duas camisolas” contra o frio
Já depois de ter deixado o cargo de ministro das Finanças, Schäuble disse que muitos dos problemas da zona euro advêm da forma como o projeto europeu foi construído. O “pecado original” foi tentar criar uma moeda comum “sem que existisse uma política económica, social e laboral comum” para todos os estados-membros. Porém, defende o alemão, os “pais-fundadores” quiseram avançar com a união monetária porque se estivessem à espera de maior união política nunca mais avançariam com nada.
O caso mais problemático foi o da Grécia, um país que Schäuble dizia que nunca deveria ter tido abertura para se juntar à zona euro. Porém, o ex-ministro das Finanças da Alemanha sempre recusou que a austeridade aplicada naqueles anos esteja na raiz do populismo que hoje se verifica em vários governos europeus. O problema, para Schäuble, está na imigração em massa, que criou muitos receios entre a população.
Mesmo os países mais ricos também estão a sofrer com o populismo, o que, dizia o alemão, era a prova de que a política de austeridade não está na origem da vaga populista: “qual é o país europeu que não tem este problema? Até a Suécia, que é o país quase sinónimo da abertura e da disponibilidade para ajudar, vive este problema“.
Na entrevista ao Financial Times, em 2019, o responsável recordou a decisão polémica de Angela Merkel de abrir as fronteiras no auge da crise dos refugiados. O ex-ministro de Merkel diz que a decisão foi correta mas devia ter sido tratada como uma “exceção”, ou seja, as fronteiras não deviam ter ficado abertas nos meses seguintes, levando à entrada de centenas de milhares de pessoas.
“Não conseguimos evitar, com essa primeira decisão, sermos mal-interpretados por todo o mundo como estando a criar uma grande oportunidade de negócio para quem se dedica ao tráfego humano. Esse foi o grande drama”. Essa decisão de Merkel, e a forma como foi gerida, foi decisiva para a subida de partidos populistas como o AfD (Alternativa para a Alemanha), dizia. “Eles atingiram um dado patamar, em que agora será mais difícil do que antes mantê-los afastados“, lamentou Wolfgang Schäuble, referindo-se ao partido nacionalista.
Mais recentemente, em outubro de 2022, Schäuble também falou sobre a crise energética que se agudizou com a invasão russa da Ucrânia. À entrada num inverno em que se temia que muitas pessoas pudessem passar frio devido ao aumento dos preços da energia, o ex-ministro das Finanças foi perentório: “Vistam uma camisola, ou duas camisolas”.
O ex-ministro pediu aos seus concidadãos que “não sejam choramingas – é preciso reconhecer que há muitas coisas que não podem ser tomadas como garantidas”. E, sobretudo, deve-se lutar contra uma ideia de que o Estado tudo providencia: “Se dermos a entender às pessoas que tudo é infinito (…) então elas vão ficar com a sensação de que o Estado pode fazer tudo – e isso não é sustentável”.