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Está quase a acontecer o que muitos previram que iria acontecer: Portugal deverá ser ultrapassado pela Roménia em 2024 no principal indicador de riqueza usado na União Europeia. Mesmo assim muitos insistem em não querer discutir porque é que isto nos está a acontecer, preferindo enterrar a cabeça na areia. |
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Há mitos que duram e perduram mesmo quando cem vezes desmentidos. Um deles é o de que as avestruzes enterram a cabeça na areia quando ameaçadas. Não é verdade, não enterram. Mas há quem enterre: os portugueses, ou pelo menos boa parte deles. |
A semana passada soubemos, graças a um trabalho de Joana Nunes Mateus, que a Roménia vai ultrapassar Portugal no PIB per capita já em 2024. Digamos que, sendo uma humilhação, não é grande surpresa. Já se tinha escrito sobre essa possibilidade no Observador e o assunto até suscitou algumas das perguntas que Miguel Sousa Tavares fez a António Costa na última entrevista que lhe fez, como o cronista fez questão de recordar no último Expresso. Na altura o primeiro-ministro desconversou, mas agora que a ultrapassagem está mesmo para acontecer podemos sempre ter duas atitudes. |
Uma é denunciar o que está mal em Portugal, este país onde, “em lugar de fomentar uma sociedade de gente livre e empreendedora, onde se incentiva e premeia o risco e a iniciativa, transformámo-nos aos poucos numa sociedade de dependentes do Estado”, a outra é fazer o que as avestruzes não fazem, ou seja, enterrar a cabeça na areia. Foi o que infelizmente aconteceu com abundância na semana que agora terminou. |
Quando discuti este tema no Contra-corrente – Mais pequeno, mais pobre, terá Portugal um futuro? – previ que certamente os propagandistas do costume viriam explicar-nos que a Roménia só nos ultrapassava porque está a perder população, o que significa que a mesma riqueza a dividir por menos habitantes ajuda o PIB per capita a crescer mais depressa, o que, sendo verdade, não passaria de uma falácia. Enganei-me: o grande argumento usado nas discussões públicas foi que o PIB, especialmente o PIB per capita em paridades de poder de compra, é um indicador com pouco significado. O tema ocupou mesmo boa parte do programa que a RTP dedicou ao assunto, Como Pode o País Crescer?, mas onde se preferiu muitas vezes falar dos defeitos da Roménia em vez de abordar os problemas de Portugal. Mais: curiosamente isso nem aconteceu por dois dos quatro membros do painel serem antigos ministros do PS, o partido que nos tem governado quase sempre, mas pela diligência de um jornalista que antes já se dedicara a encontrar números capazes de deitar abaixo a Roménia. O mesmo Expresso que deu a notícia a semana passada também tratou esta semana de ir à Roménia para poder escrever que esta não é um país de sonho, um país onde viver bem “é possível, mas muito limitado”. E não faltou mesmo – podia lá faltar… – a colherada de um dirigente do PS, no caso Ascenso Simões, muito preocupado com “a obsessão pelo PIB” e absolutamente determinado a reafirmar que, no que a ele diz respeito, “o ser latino é um património inalienável”. |
Não sei se hei-de rir ou se hei-de chorar. Quando um membro da Comissão Política Nacional do Partido Socialista tem uma tirada que nos faz regressar aos tempos do lema salazarista “pobretes mas alegretes” começo a duvidar se o ditador não ganhava pelo menos em coerência, pois não se eximia de defender (em 1962!) que “um país, um povo que tiverem a coragem de ser pobres são invencíveis”. Como não acho que seja nem razão para alegria, nem poção de invencibilidade, há muito que escrevo contra esta incapacidade portuguesa de criar mais riqueza (tenho até um livrinho sobre isso, Como Garantir que Portugal Ficará Pobre para Sempre), não vivendo apenas à espera da riqueza que nos chega de fora. |
Falo desta dependência do exterior – das especiarias do Oriente, do ouro do Brasil, das remessas dos emigrantes, dos fundos de Bruxelas – porque, depois de fazer esse meu Contra-corrente, o historiador económico Nuno Palma contactou-me para me lembrar que, entre os motivos que eu tinha apontado para a nossa anomia faltava “a maldição dos recursos”, um tema que lhe é especialmente querido e que deriva dos estudos que tem feito sobre como enriquecemos e empobrecemos nos últimos cinco séculos (há de resto um bom debate sobre este tema num E o Resto é História, o programa de Rui Ramos e João Miguel Tavares em que ele esteve como convidado – Nuno Palma e as razões do atraso português). |
Concordo com a observação, mas mesmo assim não deixo de considerar centrais alguns dos problemas que referi nesse programa, a começar pelas instituições que temos, o Estado que temos, os reguladores que temos. Com efeito tudo em Portugal parece ter sido desenhado para proteger quem já tem poder, para tornar mais difícil a vida a quem traz soluções novas, para tapar o caminho a quem desafia ideias feitas ou empresas estabelecidas. |
É assim em todo o lado – na política, na academia, no mundo das empresas. Somos um país onde a endogamia é a regra do mundo universitário, um país onde nos partidos há dinastias familiares, um país onde o corporativismo é comum no interior das mais diversas organizações. O mal é fundo e antigo. |
Depois é bom não esquecer a fragilidade dos organismos independentes do poder político. Numa sociedade aberta e numa economia de mercado é indispensável garantir que os organismos de regulação, os tribunais e mesmo a administração pública não são capturados nem pelo poder político do momento, nem pelos diferentes poderes fácticos e económicos. Isso tem sido quase impossível no nosso país, isso é ainda mais difícil de acontecer quando no poder estão os socialistas, que acreditam numa filosofia de comando e controlo da sociedade e da economia. |
Finalmente não podemos esquecer que há defeitos que parecem entranhados na nossa cultura, na nossa maneira de ser. Quase sempre se preferiu viver de rendas em vez de arriscar, até há bem pouco tempo valorizava-se mais a segurança de um emprego público às oportunidades de uma carreira no privado e se antes se esperava que fosse a Corte a proporcionar-nos a riqueza, hoje muitos ainda vêm no Estado a única solução para os seus problemas. E se ao mesmo tempo passamos a vida a dizer que somos “os melhores do mundo”, mesmo quando esquecemos todos os padrões de exigência, então a pobreza é inevitavelmente o nosso destino. |
Como se isto não chegasse temos ainda a obsessão das leis e dos regulamentos, pelo que construímos um emaranhado legal que torna a vida das empresas um inferno, faz perder tempo aos cidadãos e é um convite ao pequeno esquema e à pequena corrupção. |
Mas poucos parecem quer falar disto tudo, poucos estão disponíveis para procurar perceber porque é que, em menos de duas décadas, passámos, na Europa, da 15ª para a 21ª posição, como se mostra neste gráfico do Instituto Mais Liberdade. |
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Nos últimos seis anos, seis anos de António Costa, caímos três lugares nesta escala, não há forma de disfarçar. Infelizmente parece também haver muito pouca vontade de discutir com seriedade como inverter este descalabro. Pior: em Portugal há mesmo um “horror provinciano à diversidade e à discussão”, talvez por receio que os “paranóicos” contaminem a opinião nacional, como notou Rui Ramos. Não surpreende assim que seja sempre mais fácil alongarmo-nos sobre tudo o que na Roménia funciona pior do que em Portugal, como se fosse isso o que realmente importa. |
Devolução de obras de arte e obsessões woke |
Passei alguns dias de férias em Londres há três anos e nessa altura aproveitei para visitar um museu que não conhecia, a Wellcome Collection, uma mostra baseada numa colecção de mais de um milhão de objectos e livros sobre saúde e medicina que o sr. Henry Wellcome reuniu no final do século XIX e inícios do século XX. Para além de exposições temporárias, a exposição permanente, Medicine Man, mostrava objectos fabulosos vindos um pouco de todo o mundo. O termo certo é mesmo esse: “mostrava”, porque já não mostra. Ainda bem que ainda a vi a tempo (nomeadamente a cabeça da imagem junto, metade sã, metade a ser comida por vermes), ainda a vi antes da fúria censória do wokismo contemporâneo que, em vez de agradecer a um homem rico que dedicou uma boa parte da sua fortuna a comprar (repito: a comprar, não a saquear) objectos um pouco por todo o mundo, o condena por ter vivido num tempo de colonialismo. |
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Douglas Murray, o editor da The Spectator, escreve esta semana um belo artigo sobre o que este movimento está a fazer aos museus britânicos, tema principal da capa da revista com um título que não engana: The new vandals: how museums turned on their own collections. Nesse artigo contam-se algumas histórias extraordinárias, até pelo seu absurdo, mas não pude deixar de notar uma relativa a um pedaço da pele de Jeremy Bentham, um filósofo iluminista que doou o seu corpo para ser dissecado pela ciência, e a que na tal exposição Medecine Man tinham acrescentado uma legenda – isto antes de fecharem de vez a exposição – onde se “esclarecia” que aquela peça demonstrava que o museu se centrava no ‘the white cis-male body’ e que era tempo de desmantelar o “persistente colonialismo” e a “infraestrutura branca” daquela colecção científica. |
Quando a visitei já tinha notado que aqui e além faltavam peças pois tinham sido retiradas para avaliar se deviam estar expostas ou ser devolvidas aos países onde tinham sido adquiridas, mas não se tinha chegado a este grau de loucura. Naturalmente que me lembrei desses espaços vazios quando vi que o nosso ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, também lhe deu para estar preocupado com o que Portugal poderá ter de devolver às ex-colónias, apesar de não se conhecer o que elas tenham reivindicado. Promete por isso proceder, como ele diz, a uma “discussão séria e profunda sobre o património com origem nas ex-colónias”. |
É certo que em Portugal falta um inventário completo dos nossos museus – o Estado aliás nem sabia por onde andava parte da sua colecção de pintura e desconhece-se se já lhe descobriu o paradeiro –, mas, a avaliar pelo que disseram na Rádio Observador o historiador João Paulo Oliveira e Costa e arqueólogo e museólogo Gonçalo Amaro, não guardaremos nada que se assemelhe, no valor ou na forma como foram obtidas, aos célebres bronzes do Benin, só para citar um dos exemplos mais conhecidos destes debates sobre “devoluções”. |
Não pretendo discutir hoje o tema, muito complexo, da devolução de obras de arte, até porque tem inúmeras facetas, mas não creio que seja possível, estando criado o ambiente que está criado por estes grupos de activistas, evitar um debate polarizado como o ministro diz pretender. Até por este tema ter sido introduzido em Portugal por Joacine Katar Moreira num formato fortemente politizado e naturalmente muito polarizado (sobre a proposta da ex-deputada vale a pena ler a entrevista que na altura fizemos aqui no Observador ao historiador João Pedro Marques onde ele defendeu que “Essas pessoas querem manipular a História”). |
Não nos esqueçamos da Ucrânia |
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Não nos podemos esquecer da Ucrânia e não podemos deixar de continuar a aprender com o que lá se passa. Por isso reuni hoje mais uma pequena selecção de textos que ajudam a continuar a compreender não só a evolução da guerra, como o milagre da resistência ucraniana e dos seus sucessos. |
No primeiro regresso ao historiador Timothy Snyder para referir uma entrevista que deu ao Guardian, ‘Russia wins by losing’. Pequeno excerto desse texto: “Thinking of Ukrainians’ extraordinary “physical courage and ethical commitment”, Snyder recalls the definition of an ethical act proposed by the late Polish philosopher Leszek Kołakowski as “something which is more than anyone could have expected of you. And I think about that with respect to the Ukrainians over and over.” |
A propósito de Timothy Snyder volto a lembrar a série de seminários que deu na Universidade de Yale – The Making of Modern Ukraine – e que já estão todos disponíveis. São 21, duram sensivelmente 45 minutos cada, mas mesmo assim já somam 4,6 milhões de visualizações de pessoas de quase 70 países. Disponíveis no YouTube, Apple Podcasts e Spotify. |
Sobre a evolução da guerra propriamente dira, vale a pena ler uma análise pessimista da The Economist sobre as possibilidades de reconquista da Crimeia – A Ukrainian attempt to retake Crimea would be bloody and difficult –, um artigo bem mais optimista no Telegraph sobre as condições da guerra no Inverno – Winter is coming to war in Ukraine … and it could be Kyiv’s greatest ally – e, para um balanço mais completo do que se passou nos primeiros meses do conflito, o relatório do think tank britânico Royal United Services Institute (RUSI), um think tank que até foi fundado no século XIX pelo nosso conhecido Duque de Wellington – Preliminary Lessons in Conventional Warfighting from Russia’s Invasion of Ukraine: February–July 2022. |
Eu também dediquei o último contra-corrente desta semana aos mais recentes desenvolvimentos deste guerra – Será que Putin, o cruel, vai ter um duro Inverno? |
Zelensky faz mesmo discursos memoráveis |
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Chegou-me às mãos esta semana um livro que francamente me surpreendeu. Ao olhar para o título, Uma Mensagem da Ucrânia, e para o nome do autor, Volodymyr Zelensky, pensei que se tratava de uma mera versão alargada dos discursos que lhe temos ouvido sempre que se dirige a um parlamento nacional, ou então das mensagens que grava diariamente para informar os ucranianos de como está a decorrer a guerra. Enganei-me. Neste pequeno volume reúnem-se realmente discursos de Zelensky, mais exactamente uma seleção de 16 discursos de entre os mais de mil que ele afirma ter realizado desde que tomou posse, mas essa selecção começa precisamente com o seu discurso de tomada de posse. |
Estive a lê-los e encontrei muitos que são realmente notáveis – eu diria mesmo são quase todos muito fortes, muito poderosos. O primeiro é esse de 20 de Maio de 2019 e fez-me lembrar o da tomada de posse de John Kennedy, mas mais directo e mais forte, com uma ideia central e pouco habitual: Zelensky não veio dizer que era o presidente de todos os ucranianos, veio dizer que “agora somos todos o Presidente”, logo todos responsáveis tanto pelo futuro do país, como por nos comportarmos bem. O discurso que fez no Museu do Holocausto, em Washington, é tocante por recordar a história da sua família, entre os que foram mortos pelos nazis e os que combateram os nazis. Num outro discurso elogia os ucranianos “todos diferentes” e lembra como combatem “com a cruz, o crescente, a estrela de David”. |
E há também os discursos mais recentes, o proferido logo a 24 de Fevereiro, as mensagens enviadas ao Parlamento britânico ou ao Knesset, o discurso depois da descoberta dos massacres de Bucha, já quase no fim igualmente um discurso realizado pela sua mulher, um discurso cheio de histórias humanas. A fechar recorda-se a mensagem que dirigiu ao Parlamento português. |
No tempo de Churchill era o próprio que escrevia os seus discursos, Zelensky deve ter uma equipa de speechwriters, mas isso pouco importa – são discursos notáveis que vale a pena recordar. Para mais as receitas da venda do livro reverterão para a United24, uma organização que recolhe donativos para a apoiar a Ucrânia. |
Recordações de Svalbard a propósito de alterações climáticas |
Faz já uma dúzia de anos que estive em Longyearbyen, no arquipélago norueguês de Svalbard, bem para lá do Círculo Polar Ártico, a cidade do Mundo mais próxima do Polo Norte. Fui lá com cientistas que estudavam o degelo do ‘permafrost’, a terra permanentemente gelada que existe em regiões como aquela, ou no norte da Sibéria, ou no Alaska, e que as alterações climáticas estão a descongelar, um processo em que se libertam enormes quantidades de metano, um gás com quatro vezes mais capacidade de induzir “efeito de estufa” do que o nosso conhecido dióxido de carbono. Há mais problemas associados ao degelo do ‘permafrost’, mas lembrei-me dessa viagem a Svalbard – e das fotografias que lá fiz, de que partilho duas – ao ler um grande trabalho de Bret Stephens no New York Times, Yes, Greenland’s ice is melting, but… Publicado a propósito da COP27 que terminou recentemente no Egipto, esta reportagem/análise conta-nos como uma visita a estas regiões geladas pode acabar com muitas dúvidas sobre a dimensão das alterações climáticas, mas também como encontrar as boas soluções não passa pelo alarmismo da “catástrofe iminente”. Passa, em contrapartida, por políticas realistas que envolvam as pessoas, mesmo as mais pobres, mesmo as mais cépticas. Como ele escreve, “In the long run, we are likelier to make progress when we adopt partial solutions that work with the grain of human nature, not big ones that work against it.” Parece-me uma proposta bastante sensata, bem mais sensata que certos discursos de certos responsáveis. |
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Desejo-lhe um bom domingo. |
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José Manuel Fernandes, publisher do do Observador, é jornalista desde 1976 [ver o perfil completo]. |