“Aos 12 anos, foi chamada a uma consulta no hospital com a mãe e o pai. Os três. Não sabia o que ia acontecer, o médico que acompanhava a mãe colocou-a à vontade, pediu-lhe para falar. E ela entrou dentro de si, durante duas horas falou dos sonhos que tinha. ‘Na altura não tinha noção do que se passava com a minha mãe.’” |
Este é o segundo parágrafo da reportagem sobre o projeto Semente, uma iniciativa do Hospital Fernando Fonseca, na Amadora, dirigido a filhos de doentes acompanhados no serviço de Psiquiatria e nas equipas comunitárias daquela instituição. |
Este caso, em particular, que contamos no Mental, a secção do Observador totalmente dedicada à saúde mental, diz respeito a uma utente que é seguida há vários anos naquele serviço. Não lhe conhecemos o nome, não lhe vemos o rosto, mas a jornalista Sara Dias Oliveira conversou com ela há umas semanas durante a preparação desta reportagem. Ouviu-lhe as dores. As dúvidas. As angústias. Os desabafos. E o alívio que foi quando conseguiu, finalmente, graças a este projeto, partilhar com outros adolescentes os relatos de pais com histórias diferentes mas diagnósticos comuns. |
A pergunta que dá título a esta newsletter não foi colocada por ela, mas estava escrita numa folha branca da sala da pedopsiquiatria, juntamente com outras que espelham o que vai na cabeça de alguns jovens que por ali passam: “Quantas doenças mentais há?” “Será que a minha mãe nasceu com esta doença?” “Porque é que o meu pai toma tantos comprimidos?” “Como é que os meus pais são assim e eu não?” |
Nenhuma destas questões tem resposta fácil. Mas nenhuma fica por responder. É isso que garante a equipa do projeto Semente, que ajuda famílias a entender os dilemas e angústias dos doentes — e que acompanha também, através de outra iniciativa, grávidas com doença mental. De caminho, vigiam a alertam para o aparecimento de sintomas, encaminhando as crianças e adolescentes e prevenindo possíveis quadros de doença mental. Desde que arrancou, em 2015, o Semente já ajudou e amparou 147 famílias, implementando intervenções preventivas estruturadas para promover a comunicação familiar e competências parentais de pessoas com doença psiquiátrica. No fundo, o que os técnicos fazem é identificar precocemente problemas nos filhos, facilitando o acesso a tratamento o mais cedo possível. Ou seja, chegar aos filhos através da doença mental dos pais. |
Segundo a Organização Mundial de Saúde, uma em cada sete crianças e jovens entre os 10 e os 19 anos tem pelo menos um desafio de saúde mental, o que significa 13% desta faixa etária a nível mundial (uma em cada seis pessoas no planeta tem entre 10 e 19 anos). Se a isso somarmos a probabilidade de desenvolverem outro problema por uma questão genética ou de ambiente, percebemos melhor a importância de uma iniciativa como esta. |
Os estudos internacionais revelam que os filhos de pessoas com doença mental têm um risco acrescido de desenvolver, eles também, problemas desse foro. A transmissão geracional de doença mental é potenciada por factores familiares, como provou em 2019 um grupo de investigadores alemães. Esse risco de transmissão é real e este estudo dinamarquês, de maio deste ano, confirma isso mesmo, acrescentando, porém, que doenças físicas com sintomas gastrointestinais são também expectáveis – sobretudo em caso de doença da mãe (mais do que no pai). |
E esta investigação, publicada na revista Nature faz a ligação ao rendimento escolar das crianças: é mais reduzido no caso de filhos de pais com doença mental, se não tiverem acompanhamento ou estratégias de prevenção. |
São várias as razões e é abundante a evidência científica disponível que atesta as vantagens deste acompanhamento. Mas a reportagem sobre o projeto Semente reforça uma, em particular: o sentimento de partilha. “Aqui, ok, eu posso, de facto, falar”, diz a mesma jovem |
“O importante é que tudo seja introduzido de uma forma que traga segurança às crianças, a noção de que não estão sozinhas”, diz Teresa Maia, diretora do Departamento de Saúde Mental e do serviço de Psiquiatria de Adultos do HFF. “São os profissionais que tratam que também têm ações preventivas, o que torna a intervenção muito coerente, porque os miúdos sabem que estas pessoas não estão a falar de cor, estão a falar dos pais deles.” |
É frequente abordarmos, no Mental, o tema da saúde psicológica na infância e adolescência. Foi o que fizemos aqui, por exemplo, quando falámos do acompanhamento a crianças expostas a violência doméstica. Ou nesta reportagem sobre o hospital de dia para perturbações do comportamento alimentar. Ou nesta, sobre a associação que faz a ponte entre crianças que precisam e terapeutas que ajudam. |
Esta reportagem sobre o projeto Semente, do Hospital Fernando Fonseca, é mais uma que vale a pena ler. Mas continuaremos por aqui a trazer outras. Nesta newsletter pode encontrar os últimos trabalhos que publicámos. |