São 18h00 e a campainha toca pela décima vez. A recepcionista acolhe M. com o sorriso do costume, embora M. desconheça de que costume se trata. “Queira aguardar que a doutora ainda está em consulta”, solicitou pela quarta vez desde que regressou do almoço. Ali parecem ser quase todos os dias assim: um deambular mais ou menos sereno entre atrasos na consulta anterior e chegadas a horas. M. sussurra que não pode esperar muito, demonstrando um ligeiro revirar de olhos.

Dez minutos depois ouvem-se vozes no gabinete ao lado que sugerem despedidas e a psicoterapeuta finalmente aparece. Parecia mais nova do que M. imaginava e, talvez, simpática demais para quem se está a ver pela primeira vez. A técnica percebeu desconforto e notou em si uma certa agitação no corpo (ela sabia que era irritação e a mente a avisar que já estava demasiado cansada). Pedi a M. Para se sentar no sofá e pediu que aguardasse mais um pouco enquanto saía do gabinete (arriscou). Sabia que precisava de um breve toque tranquilizador para regular a irritação e conseguir dedicar-se na hora e pouco que tinha pela frente (nunca sabia ao certo quanto tempo seria necessário, embora tivesse saído há vinte anos da faculdade alertada para os cinquenta minutos de consulta).

Reentrou mais ligeira e sentou-se na sua poltrona, fitando M. com um sorriso. Apresentações feitas, fez a pergunta do costume. “Em que posso ajudar?”

M. respirou fundo e levantou a cabeça, fitando corajosamente a interlocutora. “Em primeiro lugar, quero dizer-lhe que estou aqui obrigada pelo meu marido e que não gosto de psicólogos! Além disso, não estou a ver como é que me pode ajudar falando comigo.” A psicoterapeuta inicia formalmente a consulta: “Obrigada pela franqueza nessa partilha. Mas permita-me, porque é que acha que veio obrigada?” Teria tido vontade de começar de outra forma, mas a experiência dizia-lhe que não era altura para tentar explicar as condições da consulta e do processo.

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M. respirou fundo e repetiu que o marido achava que ela não andava bem, embora considerasse que ele é que precisaria de ajuda, mas que jamais viria a um psicólogo. “E cá estou eu, mais uma vez, a fazer as coisas por ele”, rematou. A técnica continuou a explorar com perguntas (aproximando-se do Diálogo Socrático que mimetizara na Faculdade), tentando, com gentileza, ajudar M. a perceber se também estaria ali por si e se conseguiria encontrar naquela relação um espaço de confiança. Sabia que este espaço não ficaria definido numa primeira consulta, mas reconhecia que esta seria fundamental para que M. regressasse se dele o precisasse.

“O que quer dizer com mais uma vez a fazer as coisas por ele?” M. não se conteve e desatou a chorar… parecia ter deixado para lá a crença de que não gostava de psicólogos e permitiu-se a devagarinho consciencializar ao que vinha e a que pedido de ajuda se referia. A técnica escutava ativamente o que M. dizia e não dizia; foi solicitando contacto visual sem o pedir diretamente. Na sua mente, as perguntas sucediam-se enquanto escolhia as que lhe pareciam mais adequadas para ajudar M. a definir o seu pedido de ajuda sem ativar resistências. E M. começava a assumir-se confusa; a dada altura parecia não conseguir definir se queria ajuda ou não e para quê, mas perante as perguntas da psicoterapeuta ia conseguindo organizar-se e definindo que estava ali por ela.

“É difícil para si pedir ajuda? Em que é que lhe parece ser mais difícil?”. A técnica sabia que não podia deixar a sessão terminar sem explorar o lidar com a vulnerabilidade. E sabia-o bem… Foi necessário auxiliar M. a acolher a dificuldade em pedir o quê e como, a tolerar o sentir-se confusa e a permitir que alguém lhe fizesse companhia nesse estado. Estudara isto na Faculdade e nos vários momentos de supervisão/intervisão que se sucederiam: a validação e aceitação dos estados internos deveria ser mais ou menos isso. Precisou ainda de acompanhar o que dizia, partilhando com M. o toque tranquilizador, utilizando uma técnica da abordagem da Terapia focada na Compaixão (sem ter de dizer o que estava a fazer ou que técnica estaria a utilizar). M. talvez não precisasse disso, mas a psicoterapeuta precisava de saber o que estava a fazer.

Eram 19h45 e a primeira consulta chegava ao fim. M. aparentava maior tranquilidade, embora os olhos vermelhos e lacrimejantes apontassem para um estado diferente. Mas ainda não sabia se queria um processo psicoterapêutico; não sabia se queria voltar. A técnica arriscou: “Creio que teremos estabelecido algures neste nosso primeiro encontro que precisaria de tomar decisões por si e voltar a sentir que estava a agarrar a sua vida. Mas, só por agora, vou eu tomar as rédeas e pedir-lhe para voltar daqui a 15 dias… não sei se é por mim, que claramente estou disposta a ajudar, ou por si. Mas podemos confiar e tentar definir isto melhor numa segunda consulta?”. M. sorriu, anuiu e deixou nova marcação junto da recepcionista. A psicoterapeuta recorreu a novo toque tranquilizador no seu gabinete e chamou o cliente das 19h15.

Duas semanas depois, M. voltou e devolveu na recepção o sorriso do costume.

A psicóloga sabe que a psicoterapia não se explica, mas tem a certeza de que o processo deve ser conduzido por psicólogos clínicos, cientes de que este se desenrola algures entre modelos e técnicas que precisam dominar enquanto tocam e ajudam a gerir, com gentileza, as necessidades do outro.

Andreia Azevedo é psicóloga clínica e da saúde. Fundadora do projeto Psivalor – Núcleo de Intervenção em Saúde Mental, que atua em Leiria e Pombal (apesar de dar consultas também em Lisboa e no Porto), exerce clínica privada desde 2005. Faz palestras pelo país, organiza encontros científicos e é formadora e consultora em instituições.

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Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

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