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Que comportamentos são estes?

Chamam-se “comportamentos autolesivos” e consistem em causar algum tipo de dano ou lesão ao próprio corpo, de forma intencional.

Surgem, habitualmente, na adolescência ou início da idade adulta (embora também possam ocorrer mais tarde). Alguns dos mais comuns são fazer cortes, arranhões, queimaduras ou contusões no corpo e, para esclarecer desde já a questão, não têm intenção de suicídio.

Os Comportamentos Autolesivos sem Intenção Suicida (CALSIS) distinguem-se dos comportamentos autoinfligidos indiretamente (como abuso de drogas ou perturbações alimentares) e de outras formas de danos corporais socialmente aceitáveis (como tatuagens e piercings). De acordo como os dados portugueses do estudo Health Behaviour in School-aged Children (HBSC), de 2022, coordenado pela psicóloga Tânia Gaspar e feito em colaboração com Organização Mundial de Saúde (OMS), 24,6% dos adolescentes portugueses entrevistados tiveram pelo menos um comportamento destes durante o ano anterior.

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Todos estes comportamentos são muito graves?

Os comportamentos autolesivos nunca devem ser desvalorizados ou ignorados, mas podem ser muito variáveis em termos de gravidade, intensidade, frequência e tipo de dano. Podem ir desde o adolescente que uma vez, num contexto de experiência, faz um pequeno arranhão ou corte superficial em si próprio, até a situações mais graves, em que são causados danos mais severos e/ou de forma repetida.

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Fazer isto é considerado uma doença?

Não necessariamente. “O comportamento, em si, é patológico — porque não podemos considerar que seja uma maneira adequada de lidar com o que quer que seja — mas não quer dizer que tenha correspondência com uma doença ou psicopatologia”, esclarece Otília Queiros, pedopsiquiatra no Centro Hospitalar Universitário de Santo António, no Porto, onde dirige o Departamento de Saúde Mental e Psiquiatria da Infância e da Adolescência.

Ou seja, há adolescentes que podem ter, de forma pontual, um comportamento de autolesão sem que isso signifique que têm uma doença mental ou que estejam a desenvolver um distúrbio grave de personalidade. Mas noutros casos, mais raros, é um comportamento que pode estar associado a perturbações psiquiátricas.

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Porque é que os adolescentes fazem isto a si próprios?

As razões podem ser muito diferentes, mas, o mais comum, explica a pedopsiquiatra, é que seja “uma tentativa de regulação emocional, ou seja, uma estratégia de desviar a atenção de estados emocionais negativos, deslocando a atenção para outro tipo de estímulo”. Com frequência é também uma forma de lidar com conflitos relacionais ou de sinalizar mal-estar. Em situações mais raras, podem estar relacionados com doenças como a perturbação da personalidade borderline ou a depressão.

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E por que é que isto surge mais frequentemente na adolescência?

As razões que levam a que estes comportamentos surjam mais frequentemente nesta altura estão relacionadas com algumas características desta fase do desenvolvimento e da vida, explica Otília Queirós:

  • a adolescência é uma fase com muitos desafios, como as mudanças a nível das relações com os pais, de integração no grupo de pares e na construção do processo de identidade, que pode causar dificuldades;
  • o desenvolvimento cognitivo que se dá nesta fase faz com que o adolescente comece a levantar questões sobre si próprio, sobre o mundo e sobre os seus valores, que causam desconforto emocional;
  • as estruturas e circuitos cerebrais responsáveis pelo controlo de impulsos ainda não estão completamente desenvolvidas, razão pela qual há maior dificuldade em controlar a impulsividade;
  • por razões de imaturidade emocional: é uma fase em que há ainda dificuldade em regular os estados emocionais negativos, como a zanga, raiva, frustração, medo, tristeza ou ansiedade;
  • nesta altura surgem, muitas vezes de forma brusca, transformações corporais que levam o adolescente a sentir-se desconfortável com o próprio corpo, ao mesmo tempo que há também a tendência de expressar o mal-estar emocional através do corpo.
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Este comportamento sempre foi frequente?

Não. É um comportamento que começou a ser mais frequente nas duas primeiras décadas do século XX e é aqui que entram as razões sociais ou contextuais.

A pedopsiquiatra refere que o facto de estes comportamentos terem ganho mais visibilidade — através de meios de comunicação social, das redes sociais e mesmo de fóruns online que lhes são dedicados — favorece aquilo a que se chama “um efeito de contágio”, ou seja, o número de casos aumenta por imitação.

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Ocorre com a mesma frequência em rapazes e raparigas?

Não. Estes comportamentos ão mais comuns em raparigas. De acordo com a Otília Queirós, há três motivos que podem justificar isto:

  • a relação delas com o corpo é habitualmente mais difícil, “porque existe uma pressão social para ter uma certa imagem corporal, muitas vezes irrealista, e essa pressão é maior nas raparigas.” Isso faz com vivam as mudanças corporais — que também aparecem mais cedo nelas … com mais dificuldade do que os rapazes;
  • sabe-se também que são as raparigas, sobretudo as mais novas, que são mais suscetíveis a fenómenos de contágio e imitação, o que também pode contribuir para esta frequência maior;
  • os estados de ansiedade ou depressivos também são mais frequentes nas meninas nesta fase da vida. Além disso, ao passo que os rapazes têm tendência a exteriorizar estas emoções — dirigem a agressividade para fora, por exemplo, envolvendo-se em lutas e discussões —, as raparigas tendem a dirigir essa agressividade para dentro, em relação a elas próprias, o que pode justificar que tenham mais comportamentos autolesivos.
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Quais são os fatores de risco para que os adolescentes tenham estes comportamentos?

De forma mais geral, tudo o que também contribui para outros problemas de saúde mental, diz a médica: “pobreza e desigualdade, a dificuldade na integração social, no grupo de pares ou na escola e problemas familiares”. Sobre este último aspeto, frisa que Portugal continua a ter taxas preocupantes de violência doméstica, o que contrubui bastante para este risco.

Por outro lado, a imaturidade emocional. Quanto menos competências relacionais, de expressão e regulação emocional tiver o jovem, mais dificuldade vai ter em gerir as dificuldades relacionais ou estados de espírito de tristeza ou ansiedade de uma forma ajustada, havendo então o risco de optar por este tipo de comportamento desajustado para lhes dar resposta.

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A que é que os pais devem estar atentos? E o que fazer?

Os pais devem estar atentos ao comportamento dos filhos no geral: saber como corre a vida deles, se têm relações sociais satisfatórias, como vão na escola, quais as rotinas habituais. São as alterações aos padrões normais — de sono, de alimentação, de humor, de hábitos, de socialização — que merecem um olhar mais atento e uma conversa com o jovem.

Se descobrirem que houve um comportamento destes, ainda que se sintam alarmados ou chocados, são de evitar conclusões precipitadas, “sejam elas pressupor logo que se trata de uma doença mental ou, pelo contrário, ignorar como se fosse uma mera chamada de atenção”.

O mais importante, diz a especialista, “é estabelecer comunicação com o adolescente, procurando ouvir e compreender”. Idealmente, deve também tentar aferir-se se se tratou de um único episódio ou se é frequente, o que é que precipita o comportamento e o que estava a sentir o jovem, de forma a dar-lhe espaço para se expressar.

Se o comportamento for recorrente, se tiver havido uma lesão grave ou houver outros sinais de mal-estar, deve recorrer-se imediatamente a um profissional de saúde. Numa primeira fase, a pedopsiquiatra defende que faz sentido que seja alguém que o adolescente já conhece e com quem se sente à vontade — o pediatra, o médico de família ou uma psicóloga escolar que já atendeu o adolescente noutra ocasião, por exemplo. Se houver necessidade, estes profissionais farão o encaminhamento para um atendimento mais especializado.

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É possível prevenir estes comportamentos?

A prevenção destes comportamentos não é diferente da prevenção da doença e da promoção da saúde mental em geral, defende a médica. Passa por promover hábitos de vida saudáveis em relação ao sono, à alimentação, à atividade física e ao uso responsável de tecnologias, por um lado, e, por outro, por fazer a nível social, escolar e familiar tudo o que seja possível para ajudar os adolescentes a desenvolverem competências emocionais e sociais que lhes permitam saber identificar e expressar adequadamente o que sentem.

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Como se trata este problema?

Depende dos casos. “Uma grande parte destes comportamentos desaparece espontaneamente ou ocorre de forma autolimitada no tempo, ou seja, desaparecem na ausência de qualquer tipo de intervenção”, explica a psiquiatra da infância e adolescência, sobretudo nos casos em que acontecem por mera experimentação ou no contexto de algum problema psicossocial — por exemplo, uma integração escolar difícil ou um conflito com os pares.

Quando estão associados a outra doença — como uma perturbação de ansiedade ou sintomas depressivos — o tratamento passa por fazer um tratamento dirigido a essa situação que lhes dá origem, seja com medicação ou (e) com psicoterapia.

Nas situações, mais raras, em que este comportamento está associado a perturbações de personalidade — como a perturbação borderline —, há alguns programas psicoterapêuticos específicos para os quais os jovens podem ser encaminhados.

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E há casos em que estes comportamentos podem surgir em idade adulta?

Sim, embora sejam raros. Pode haver comportamentos autolesivos sem intenção suicida em adultos, sendo que, por norma, estão associados a doenças mentais graves, como a perturbação da personalidade borderline, tendo tido início na adolescência.