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Terminou 2023, o ano mais quente alguma vez registado. O ano que agora deixámos para trás ficou marcado por uma sucessão de recordes climáticos preocupantes, mas a comunidade científica já avisou: 2024 pode ser ainda mais quente. Na primeira edição de 2024 desta newsletter, olhamos para o que marcou 2023 e para o que poderá vir a marcar o novo ano, pelos olhos dos cientistas e dos ambientalistas. |
No início de dezembro, os cientistas do Serviço de Alterações Climáticas do Copernicus (C3S), da União Europeia, já deixavam o alerta: mesmo tendo em conta apenas os dados de novembro, já se podia dizer com toda a certeza que 2023 tinha sido o ano mais quente desde o final do século XIX, quando começaram a fazer-se registos. O próprio mês de novembro tinha sido extraordinariamente quente: foi o novembro mais quente desde que há registos e foi o sexto mês consecutivo em que esse recorde relativo foi batido. |
Mas os recordes não se ficaram por aí. Julho de 2023 não foi apenas o julho mais quente, foi mesmo o mês mais quente desde que existem registos de temperatura. A temperatura média global desse mês foi de 16,95ºC, batendo por 0,33ºC o recorde anterior, registado em julho de 2019. |
Se somarmos àquele julho os meses de junho e agosto (respetivamente, o junho e o agosto mais quentes desde que há registos), chegamos a outro recorde: o verão de 2023 foi o mais quente de sempre no Hemisfério Norte, com uma temperatura média de 16,77ºC. A estas médias juntam-se ainda múltiplos picos históricos de temperatura registados em vários pontos do globo, incluindo em Portugal — e, pela primeira vez, a temperatura média global esteve, durante dois dias consecutivos, 2ºC acima dos valores pré-industriais, abrindo uma janela para aquilo que poderá ser o futuro do planeta nos cenários médios de aquecimento global previstos pelos cientistas. |
Mas o ano de 2023 não ficou marcado apenas por recordes de temperatura. Fogos de enormes dimensões no Canadá e na Grécia, picos de chuva na Ásia e temperaturas recorde na superfície dos oceanos transformaram o ano que acabou num exemplo claro do que está a acontecer com o planeta. Mas 2023 não é um caso isolado: basta recordar que todos os anos desde 2014 se encontram no top 10 dos anos mais quentes desde que há registos; e, também, ver como, observando os registos do último século, se verifica um aumento muito significativo do ritmo a que o planeta está a aquecer. |
O ano que passou poderá ser, por isso, apenas o início de uma nova era de temperaturas recorde — que se traduzem num aumento da frequência e da intensidade de fenómenos meteorológicos extremos, com graves consequências humanas e económicas, especialmente para as regiões mais pobres do mundo. Um relatório publicado há poucos dias dava conta de uma estatística reveladora: as 20 piores catástrofes climáticas do ano que passou custaram, em média, 360 euros a cada habitante do país onde ocorreram. |
Em maio de 2023, a Organização Meteorológica Mundial deixou o aviso: tudo indica que o período 2023-2027 será o período mais quente alguma vez registado. Nesses cinco anos, é muito provável que pelo menos durante um ano a temperatura média do planeta esteja 1,5ºC acima dos níveis pré-industriais. |
A comunidade científica estima que o ano que agora começa possa superar vários dos picos registados em 2023. Isto porque, por um lado, as emissões de gases com efeito de estufa continuam a aumentar e, por outro lado, os efeitos da ação humana serão exponenciados pelo fenómeno oceano-atmosférico periódico El Niño, sob cuja influência o planeta já se encontra desde o verão de 2023. |
O melhor e o pior de 2023 para os ambientalistas portugueses |
No que toca à política climática global, o ano de 2023 ficou essencialmente marcado pela COP 28, a 28.ª edição da cimeira do clima das Nações Unidas, que decorreu no Dubai sob uma chuva de polémicas — especialmente devido ao facto de o CEO da petrolífera estatal dos Emirados Árabes Unidos ter sido escolhido para liderar as negociações climáticas. A COP 28, que herdava das edições anteriores um complexo caderno de encargos e um grande número de pontas soltas, produziu um acordo final classificado como “histórico” que inclui um compromisso, ainda que vago, de afastar o mundo dos combustíveis fósseis. |
O resultado final não convenceu uma boa parte da comunidade científica, com alguns investigadores a apontarem “retrocessos” na política para os combustíveis fósseis ou a declararem que foram as empresas de combustíveis fósseis os verdadeiros vencedores da cimeira. |
Em Portugal, duas das principais associações ambientalistas do país — a Quercus e a Zero — fizeram balanços relativamente tímidos do ano que acabou, apontando vários pontos negativos na política climática portuguesa e europeia. |
A Zero, por exemplo, atirou ao Governo, listando entre os factos mais negativos de 2023 o atraso na implementação de vários aspetos da Lei de Bases do Clima — uma lei promulgada no final de 2021 e cuja aplicação tem vindo a dominar uma boa parte do debate climático em Portugal nos últimos dois anos —, mas também a entrada em vigor do Simplex Ambiental, que concretizou “uma versão retrógrada do que pode e deve ser a relação de um país com as bases da sua sustentabilidade ambiental”. |
A associação sublinhou ainda o “significativo aumento das emissões de dióxido de carbono” relacionado com os combustíveis fósseis no setor dos transportes, afirmando que esse aumento põe “em risco o cumprimento de metas futuras”, e lamentou a “deriva conservadora no Parlamento Europeu”, que levou ao enfraquecimento de “várias propostas legislativas” de âmbito ambiental. Para os ambientalistas da Zero, a possível extinção do escalo-do-mira, um pequeno peixe endémico da bacia hidrográfica do rio Mira, é outro dos pontos negros do ano de 2023: a confirmar-se, poderá ser a primeira espécie a desaparecer em Portugal devido aos efeitos das alterações climáticas. Pode recordar aqui o trabalho do Observador sobre esta espécie. |
No mesmo sentido, a Quercus colocou entre os piores acontecimentos ambientais de 2023 os grandes incêndios, a grave seca registada em Portugal e o aumento da temperatura global, bem como o abate de árvores em nome da transição energética e a aprovação, por parte da Comissão Europeia, do uso do glifosato — um herbicida com “riscos para a saúde”. A organização listou ainda as guerras na Ucrânia e na Faixa de Gaza entre o pior de 2023: além do drama humanitário, lembra a Quercus, as guerras têm também um forte impacto ambiental, devido à destruição do território e ao enorme consumo de recursos associado não só aos esforços de guerra, mas também à reconstrução dos territórios. |
Já no sentido positivo, a Zero destacou a concretização da avaliação ambiental estratégica sobre a futura localização do aeroporto de Lisboa com uma “ampla participação pública”, o facto de Portugal ter tido seis dias ininterruptos de abastecimento elétrico exclusivamente oriundo de energias renováveis, a aprovação da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza Energética, a saída de Portugal do Tratado da Carta de Energia e a criação do primeiro restaurante zero waste da Europa em Portugal. |
A Quercus, por seu turno, elogiou a crescente mobilização da sociedade civil para os temas ambientais em 2023, a criação de mais áreas marinhas protegidas nos Açores, a declaração de impacte ambiental desfavorável do projeto da central fotovoltaica de Estoi, no Algarve, e ainda a criação da Aliança Europeia para a Agricultura Regenerativa. |
Ambas as organizações ambientalistas têm agora os olhos postos em 2024, que ficará marcado por eleições legislativas e europeias. A Zero destaca que os dois atos eleitorais serão fundamentais para o futuro da política climática em Portugal e na Europa. O ano de 2024 será ainda marcado pela revisão do Plano Nacional de Energia e Clima e do Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2045 — o que obrigará o próximo Governo português a ser mais ambicioso nestes planos. Além disso, a Zero pede ainda que o ano que agora começa traga garantias de “idoneidade” e “qualidade” nos processos de avaliação ambiental, colocados sob os holofotes mediáticos com os escândalos em torno do data center de Sines e das minas de lítio, que estão no centro do caso que levou à demissão de António Costa. |
A Quercus pede, por seu turno, a Portugal e aos restantes signatários dos tratados climáticos da ONU que adotem, em 2024, “medidas coerentes” para o fim dos combustíveis fósseis, dando uma tradução efetiva aos compromissos vagos assumidos na COP 28. |