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Durante muito tempo, a ribeira do Torgal, em Odemira, foi a única casa do escalo-do-mira, um pequeno peixe endémico de Portugal que precisa de águas correntes.
Este ano, a ribeira do Torgal secou quase por completo.
Um grupo de ambientalistas da Zero visitou o local e desconfia que a seca poderá ter dizimado irreversivelmente o escalo-do-mira.
A confirmar-se, este peixe nativo do Baixo Alentejo poderá ficar na história como uma das primeiras espécies a extinguir-se devido às alterações climáticas.
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Cedida por Paulo Lucas/Zero

Cedida por Paulo Lucas/Zero

Uma ribeira que secou e uma espécie única que desapareceu. O peixe alentejano que poderá estar extinto por causa das alterações climáticas

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Quando, há poucas semanas, um grupo de ambientalistas da organização Zero visitaram a ribeira do Torgal, pequeno afluente do rio Mira situado na periferia de Odemira, “foi uma grande tristeza”. As palavras são de Paulo Lucas, dirigente da associação ambientalista, que fez parte do grupo que recentemente descobriu a ribeira do Torgal completamente seca.

Durante séculos, aquele foi um curso de água permanente. Agora, a escassez de água poderá ter convertido a ribeira num curso de água intermitente que seca no verão — como já acontece com dezenas de outros cursos de água. O pior de tudo? Aquela ribeira era o único lugar do planeta onde vivia o escalo-do-mira, um pequeno peixe de água doce que já era uma das espécies mais ameaçadas do país e que agora poderá estar totalmente extinto. A única esperança reside num pequeno pego onde ainda restava alguma água — mas mesmo aí, a existência de vários predadores é uma ameaça àquela pequena espécie que, além disso, precisa das correntes para sobreviver.

A viagem ao Baixo Alentejo nem foi especialmente motivada pelo escalo-do-mira. Na verdade, a associação visita com frequência aquela região do país para “ver a situação das estufas” que abundam por ali e que a Zero tem denunciado como um problema de agricultura intensiva que ameaça o Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina. “Estávamos de passagem por lá e, como já tínhamos estado ligados à ribeira do Torgal, fizemos uma derivação no caminho e fomos verificar como estava. Foi uma constatação… Quando vimos o leito todo seco, no início, não nos caiu a ficha. Mas depois começámos a pensar: onde é que está o escalo?”

A ribeira do Torgal secou totalmente este ano

Cedida por Paulo Lucas/Zero

Paulo Lucas já não visitava a ribeira do Torgal há três ou quatro anos. Em tempos, quando ainda fazia parte da Quercus, esteve envolvido num projeto de conservação que passava pela reprodução do escalo-do-mira em cativeiro para manter a espécie viva, mas o projeto viria a ser descontinuado e, atualmente, não há notícias deste discreto peixe português. Mesmo que, com o regresso das chuvas, a ribeira volte a encher-se de água, os peixes que ali viviam morreram todos — e não é certo que a espécie continue a existir no futuro, já que não tem condições de sobreviver num curso de água intermitente.

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O ambientalista da Zero, que se há mais de 30 anos se dedica a projetos de conservação da natureza, não tem dúvidas de que o escalo-do-mira poderá ser “uma das primeiras vítimas das alterações climáticas” — ainda que mantenha alguma esperança em não ter razão.

O escalo-do-mira, porém, não está sozinho. Em Portugal, há várias dezenas de espécies de plantas e animais que estão gravemente ameaçadas de extinção. Os “livros vermelhos”, como são conhecidas as listagens de espécies ameaçadas preparadas pela comunidade científica, apontam as culpas às mudanças no clima e à destruição dos habitats. Há espécies que já se extinguiram e outras que podem ficar extintas em breve, mas também há casos de sucesso, como o do lince-ibérico e o da águia-imperial, que mostram como é possível reverter situações de quase extinção.

Uma espécie em risco há duas décadas

Pode dizer-se que o escalo-do-mira é um peixe autenticamente português. “Só existe naquele lugar”, explica Paulo Lucas ao Observador, acrescentando que aquela espécie é classificada como um caso de “endemismo lusitânico” — ou seja, resulta de um processo evolutivo que decorreu exclusivamente no território português, mais concretamente na bacia hidrográfica do rio Mira, no sudoeste alentejano.

“É uma espécie que ali ficou, confinada àquela bacia hidrográfica, isolada. Isto são coisas que acontecem ao longo de milhões de anos”, continua o ambientalista da Zero, lembrando que o escalo-do-mira sempre beneficiou de um conjunto de fatores que permitiram o seu desenvolvimento e manutenção. Por um lado, nunca foi ameaçado por grandes predadores, que não existiam naquela bacia hidrográfica. Por outro lado, beneficiou da existência de cursos de água permanentes — o que é fundamental para a sua sobrevivência, já que o escalo-do-mira precisa das “águas correntes, mais oxigenadas”.

O escalo-do-mira, que pode chegar aos 16 centímetros de comprimento, tem uma longevidade máxima de seis anos de idade e atinge a maturidade aos dois anos — o que significa que “só tem um horizonte temporal de quatro anos de vida em que se pode reproduzir”. Alimentando-se essencialmente de pequenos insetos aquáticos, o escalo-do-mira “gosta muito de correntes muito oxigenadas” e, por isso, a bacia hidrográfica do Mira foi “o habitat perfeito para ele”.

O escalo-do-mira é um pequeno peixe que vive cerca de seis anos

Cedida por associação ambientalista Zero

O nome científico da espécie — Squalius torgalensis — remete-nos para o local preferido daquele peixe, a ribeira do Torgal, afluente do Mira nas proximidades de Odemira. Segundo o “Livro Vermelho dos Peixes Dulciaquícolas e Diádromos”, publicado em 2023 pela FCiências.ID e pelo ICNF, o escalo-do-mira tinha até há bem pouco tempo “uma distribuição reduzida”, ocupando uma área de apenas 52 quilómetros quadrados e contabilizando-se apenas três localizações.

“A sua distribuição restrita é agravada pela ocorrência de uma fragmentação severa, suspeitando-se que a maioria dos indivíduos ocorre em subpopulações pequenas e isoladas, suscetíveis de se extinguir, e com reduzida probabilidade de recolonização, associada a um declínio continuado da qualidade do habitat, que deverá ter repercussões na tendência populacional da espécie”, lê-se naquele documento.

A própria existência atual da espécie é um indicador de que, “nos últimos milhares de anos, não houve grandes alterações ali do ponto de vista climático, que fizessem secar a ribeira”, destaca Paulo Lucas. Contudo, o escalo-do-mira sempre esteve em risco: existindo apenas num lugar tão confinado, basta uma tragédia ambiental situada nesse lugar para dizimar toda a espécie. A gravíssima situação de seca que se verificou nos últimos anos — especialmente no verão de 2023, um ano com sucessivos recordes históricos de temperatura na Europa e no mundo — afetou particularmente o Baixo Alentejo e secou a ribeira do Torgal.

Pelo menos desde o início dos anos 90 que as autoridades portuguesas responsáveis pela conservação da natureza têm vindo a dar uma atenção especial às diferentes espécies ameaçadas de extinção no país. Um dos primeiros projetos remonta a 1990, quando o Serviço Nacional de Parques, Reservas e Conservação da Natureza (SNPRCN, antecessor do atual Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, ICNF) começou a elaborar os primeiros Livros Vermelhos do país. Esse primeiro projeto incluiu três volumes: o primeiro, publicado em 1990, debruçou-se sobre os mamíferos, aves, répteis e anfíbios; o segundo, de 1991, centrou-se nos peixes dulciaquícolas e migradores; o terceiro, de 1993, foi sobre os peixes marinhos e estuarinos.

Como se pode ler na página do mais recente livro vermelho dos mamíferos em Portugal, foi dessa obra publicada em três volumes no início da década de 1990 que resultou “a primeira identificação das espécies consideradas ameaçadas em Portugal” — um trabalho realizado por “especialistas das várias universidades portuguesas”, coordenados pelo SNPRCN.

"Era uma espécie considerada criticamente em perigo no Livro Vermelho dos Vertebrados. Fazia todo o sentido reproduzi-la em cativeiro. Caso ocorresse uma situação com esta que ocorreu agora, tínhamos ali um conjunto de espécimes para que pudesse voltar a existir."
Paulo Lucas, da associação ambientalista Zero

Uma década depois, em 2001, já sob o comando do novo Instituto da Conservação da Natureza (ICN), voltou a ser realizada uma análise ao estado das espécies de vertebrados em Portugal, que resultaria na publicação do novo Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal, em 2005. Nessa edição, o escalo-do-mira foi classificado como “criticamente em perigo”, a mais elevada categoria de ameaça numa escala que inclui oito níveis: “pouco preocupante”, “quase ameaçado”, “vulnerável”, “em perigo”, “criticamente em perigo”, “regionalmente extinto”, “extinto na natureza” e “extinto”.

Por essa razão, o pequeno peixe alentejano começou a ser objeto de preocupação dos ambientalistas. Em 2008, Paulo Lucas — tal como uma boa parte dos elementos fundadores da Zero — fazia parte da Quercus, a célebre associação ambientalista fundada em 1985 em Braga. Nessa altura, a organização deu início a um projeto de conservação ex-situ de espécies criticamente ameaçadas, incluindo o escalo-do-mira. O projeto, inicialmente financiado pela EDP, consistia na reprodução em cativeiro de um número significativo de peixes ameaçados, no Posto Aquícola de Campelos, em Figueiró dos Vinhos.

“Era uma espécie considerada criticamente em perigo no Livro Vermelho dos Vertebrados. Fazia todo o sentido reproduzi-la em cativeiro”, explica Paulo Lucas. “Caso ocorresse uma situação com esta que ocorreu agora, tínhamos ali um conjunto de espécimes para que pudesse voltar a existir.”

Com a cisão ocorrida na Quercus no final de 2015, um conjunto de antigos dirigentes, como Francisco Ferreira, fundaram a Zero, e Paulo Lucas acabaria por se afastar do projeto. O “Projeto de Conservação Ex-Situ de Organismos Fluviais” continua ativo e a sua página no Facebook continua a divulgar com frequência notícias sobre a conservação de espécies ameaçadas. Em 9 de abril de 2020, o projeto anunciou o repovoamento da ribeira do Torgal, em Odemira, com espécimes de boga-do-sudoeste e escalo-do-mira, duas espécies ameaçadas da região.

De acordo com o Livro Vermelho dos Peixes Dulciaquícolas e Diádromos, o escalo-do-mira “é uma espécie protegida em Portugal e a nível europeu”, mas existe “uma significativa lacuna de conhecimento acerca da espécie, que importa colmatar”. Por outro lado, o mesmo livro destaca que a espécie “foi alvo de medidas de reprodução ex-situ e repovoamento, interrompidas em 2021, mas que devem ser retomadas”, numa referência ao programa da Quercus.

A página do escalo-do-mira no Livro Vermelho dos Peixes Dulciaquícolas e Diádromos

Paulo Lucas aponta para esta frase do Livro Vermelho para sublinhar que não tem a certeza de que o escalo-do-mira ainda esteja a ser reproduzido pela Quercus (com que, de resto, a Zero tem tido uma relação complexa desde a cisão de 2015). Seria “uma salvaguarda importante”, argumenta o ambientalista.

O Observador questionou a Quercus sobre se o projeto iniciado em 2008 ainda continua ativo e se o escalo-do-mira é uma das espécies a serem reproduzidas em cativeiro. A organização ambientalista confirmou que aquela foi “uma das espécies-alvo do programa de reprodução” e adiantou que, entre 2011 e 2020, foram libertados na ribeira do Torgal “mais de 1.300 indivíduos desta espécie” reproduzidos no Posto Aquícola de Campelo.

“Atualmente, o escalo-do-mira não está a ser reproduzido neste espaço,  devido a obras profundas de reabilitação e adaptação que ali tiveram lugar entre 2020 e 2023, no âmbito da candidatura “CRER – Adaptação do Posto Aquícola de Campelo para Criação experimental de Trutas Assilvestradas”, integrado no ALJIA- Plano de Gestão Integrada da Ribeira de Alge, aprovada pelo PORTUGAL2020 / MAR2020, uma candidatura realizada pelo Município de Figueiró dos Vinhos com o acompanhamento técnico e científico da Universidade de Évora e do  MARE – Centro de Ciências do Mar e do Ambiente”, acrescentou a Quercus.

A Quercus acrescentou ainda que o programa continua a decorrer em Figueiró dos Vinhos e que as obras contribuíram para “melhorar substancialmente as infraestruras existentes, não estando por isso afastada a possibilidade de, num futuro próximo, uma vez reunidas todas  as condições necessárias, incluindo as científicas e do próprio financiamento,  poder vir a ser retomado o programa de reprodução da espécie escalo-do-Mira que, de acordo com as informações académicas e científicas disponíveis, não se encontra extinta, mas sim Criticamente em Perigo (CR)”.

“Uma das primeiras vítimas das alterações climáticas”

A extinção do escalo-do-mira não é, para já, um facto confirmado, mas afigura-se como muito provável, lamenta o ambientalista da Zero. “A acontecer a extinção da espécie, ela será uma das primeiras vítimas das alterações climáticas”, aponta Paulo Lucas. “São efeitos das alterações climáticas.”

No entender do dirigente da Zero, são vários os fatores que deixam evidente que a ação humana teve um papel importante na ameaça crítica ao pequeno peixe alentejano. Basta, por exemplo, olhar para o ambiente em torno da ribeiro do Torgal para constatar que se trata de “um bosque de amieiros”, que “são árvores características de ecossistemas em que as raízes estão permanentemente dentro de água”. Ou seja, aquele sempre foi um lugar de um curso de água permanente, infere Paulo Lucas.

Por outro lado, a própria existência do escalo-do-mira ali mostra que, em princípio, aquela ribeira nunca secou totalmente. Sendo um peixe que necessita de águas correntes e bem oxigenadas para sobreviver, “se aquela espécie está lá, é porque a ribeira nunca secou como secou agora”.

Quando, no final de outubro, a Zero lançou um comunicado alertando para a possível extinção do escalo-do-mira, deixou uma pequena porta aberta de esperança: “Ao que se sabe, o único local que não secou em toda a bacia hidrográfica parece ter sido o pego das Pias, residindo aí a última esperança de que alguns exemplares da espécie possam ter sobrevivido, ainda que neste local abundem espécies exóticas invasoras, como o lagostim-vermelho-da Louisiana (Procambarus clarkii), a perca-sol (Lepomis gibbosus) ou o temível predador Achigã (Micropterus salmoides), que tornam improvável qualquer cenário que não a extinção da espécie.”

Este último é um exemplo clássico de como uma espécie exótica, que é natural da América do Norte e foi introduzida artificialmente em Portugal durante o século XX para promover o desenvolvimento da pesca desportiva, tem vindo a colocar em causa muitos dos ecossistemas piscícolas do país: não só compete com as espécies nativas por recursos como é um dos principais predadores de várias das espécies nacionais. “Os pescadores queriam peixes significativos e foram introduzindo peixes invasores”, explica Paulo Lucas, sublinhando que o escalo-do-mira não tem grande interesse económico para a pesca: “É um pequeno peixinho, estava ali escondido. Mesmo que algum pescador desportivo o apanhasse, não tinha grande interesse.”

"A acontecer a extinção da espécie, ela será uma das primeiras vítimas das alterações climáticas."
Paulo Lucas, da associação ambientalista Zero

Depois do Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal, publicado em 2005, a comunidade científica continuou a avaliar o estado de ameaça das várias espécies em Portugal. Recentemente, já neste ano de 2023, foram publicados novos livros vermelhos, incluindo o Livro Vermelho dos Mamíferos de Portugal Continental e Livro Vermelho dos Peixes Dulciaquícolas e Diádromos. Neste último, o escalo-do-mira, que em 2005 tinha sido classificado como “criticamente em perigo”, passou a estar apenas classificado como “em perigo” — o que parece contraintuitivo.

No entanto, o próprio livro vermelho alerta: a alteração de classificação deve-se “apenas à alteração da metodologia de determinação da extensão de ocorrência e da área de ocupação, não refletindo uma efetiva diminuição do risco de extinção desta espécie em Portugal”. É, portanto, “uma mudança não genuína, decorrente da revisão de critérios”.

A seca grave que se verificou este verão na ribeira do Torgal poderá, todavia, ter dizimado a espécie. “Só subsiste o pego das Pias”, insiste Paulo Lucas, explicando que se trata de “uma zona mais encaixada”, como um “nano-canyon”. Os ambientalistas não conseguem ter a certeza sobre se sobreviveram alguns espécimes do peixe naquele pego, mas, mesmo que tenham sobrevivido, a existência de vários predadores no local levam a “uma grande probabilidade de a espécie se ter extinto na natureza”.

Como dano colateral, a seca na ribeira do Torgal poderá ter também eliminado daquele local o Unio tumidiformis, um bivalve de água doce que está classificado como “vulnerável” na Lista Vermelha dos Invertebrados. “Uma das localizações onde ele ocorria era ali naquela ribeira”, lembra Paulo Lucas, que encontrou vários espécimes mortos na visita ao local. Deverá ser, diz o ambientalista, uma “extinção local da espécie”.

Exemplos de Unio tumidiformis, um bivalve de água doce, encontrados mortos na ribeira do Torgal

Cedida por Paulo Lucas/Zero

Perante a “tragédia ambiental” que ali aconteceu, e que poderá ter acabado com um “ex-libris da zona de Odemira”, a associação Zero fez um alerta ao Governo, para que o Ministério do Ambiente envie “meios urgentes para o terreno com o objetivo de avaliar se ainda sobreviveram exemplares do escalo-do-mira”. Tratando-se de uma espécie que só existe em Portugal, “recai sobre o país a responsabilidade total quanto à sua conservação”, diz a associação, que também lamentou a “incompreensível inação das autoridades, em particular o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, ainda para mais porque a área se situa em pleno Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina”.

A Zero acusa o Estado de falhar “em toda a linha” na proteção das espécies. Agora, segundo Paulo Lucas, a associação quer dar tempo ao Governo para analisar a situação — e também para perceber que impacto o regresso da chuva neste outono poderá ter na eventual recuperação da espécie.

O Observador questionou o Ministério do Ambiente, sobre se pondera tomar alguma medida, mas não recebeu qualquer resposta até à publicação deste artigo.

A seca total da ribeira do Torgal poderá ditar a extinção do escalo-do-mira
Cedida por Paulo Lucas/Zero
A única esperança reside no pego das Pias, onde poderão ter sobrevivido alguns espécimes
Cedida por Paulo Lucas/Zero
Nessa zona, restou alguma água, mas existem ali vários predadores
Cedida por Paulo Lucas/Zero
Mesmo no pego das Pias, a água desceu consideravelmente em relação ao normal
Cedida por Paulo Lucas/Zero

O escalo-do-mira não é, porém, a única espécie em risco devido ao impacto humano no ambiente e no clima. “A bacia do Guadiana está altamente pressionada, as ribeiras do Algarve estão muito pressionadas”, diz Paulo Lucas, falando de duas das bacias hidrográficas mais ameaçadas do país. “Um dos indicadores é o armazenamento nas barragens. É cada vez mais difícil encher as barragens”, sustenta, apontando também as repercussões deste fenómeno no meio aquático, já que as barragens descarregam menos caudal para os cursos de água.

“Há muito o discurso de que a água corre para o mar e perde-se no mar, como se não precisássemos de ter ecossistemas aquáticos”, lamenta o ambientalista. “É o tipo de abordagem que vemos em alguns agricultores”, acrescenta, sublinhando que é um erro pensar na água apenas numa perspetiva de retenção em barragens para agricultura. “Não faz sentido”, diz ainda, frisando que é necessário manter os ecossistemas aquáticos com água a correr.

Segundo Paulo Lucas, há três espécies de peixes no sul do país a preocupar os ambientalistas neste momento. O saramugo, espécie endémica da Península Ibérica que reside apenas na bacia hidrográfica do rio Guadiana, é uma das principais preocupações — e tem sido alvo de projetos de conservação. A ele juntam-se o escalo-do-arade e a boga-do-sudoeste, endémicos de Portugal, igualmente ameaçados pelo agravamento do clima.

Dezenas de espécies ameaçadas em Portugal

Apesar do território relativamente pequeno, Portugal é um país com grande biodiversidade, mas também com muitas espécies ameaçadas de extinção. O caso do escalo-do-mira é paradigmático da ameaça que recai sobre muitas espécies que existem em territórios muito limitados. Em 2010, por exemplo, a Associação Natureza Portugal, parceira nacional do World Wide Fund for Nature (WWF), lançou o top-5 das espécies mais ameaçadas e emblemáticas de Portugal, incluindo nessa lista o sobreiro, a água-imperial, o lince-ibérico, o saramugo e a foca-monge do Mediterrâneo.

Esta última, a foca-monge do Mediterrâneo, também conhecida como lobo-marinho, é, segundo a National Geographic, “a foca mais rara à face da Terra”. Há registos históricos de navegadores portugueses terem contactado pela primeira vez com este animal marinho durante os descobrimentos do século XV. Durante décadas, a foca-monge era muito fácil de encontrar por toda a bacia do Mediterrâneo e também na costa atlântica africana, mas hoje em dia restarão apenas cerca de 500 indivíduos, uma grande parte ao largo da ilha da Madeira — protegidos por legislação internacional, nacional e regional.

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Outro exemplo bem conhecido é o da águia-imperial-ibérica, que é endémica da Península Ibérica e que, durante vários anos, esteve criticamente ameaçada de extinção. Segundo a Wilder, esta espécie deixou de se reproduzir em Portugal nos anos 80 e só voltou a nidificar no país em 2003. Em 2013, havia em Portugal apenas 11 casais reprodutores da espécie. Foi nesse ano que surgiu o projeto Life Imperial, coordenado pela Liga para a Proteção da Natureza (LPN). Ao fim de sete anos, já havia 24 casais reprodutores e a espécie está hoje classificada como “vulnerável”.

A águia-imperial-ibérica é uma das espécies mais ameaçadas em Portugal

Ministerio de Medio Ambiente, CC BY-SA 3.0, via Wikimedia Commons

Em 2005, o Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal listava um total de 175 espécies ameaçadas de extinção no país — incluindo algumas das mais conhecidas do público, como o lobo-ibérico, o lince-ibérico, a águia-imperial-ibérica, o abutre-preto e o saramugo. Várias destas espécies têm sido objeto de projetos de conservação relativamente bem sucedidos, mas o impacto das alterações climáticas tem contribuído crescentemente para tornar a vida mais difícil a muitas espécies que vivem no país.

Os diferentes livros vermelhos publicados mais recentemente, que servem de atualização à edição única de 2005, dão conta de um cenário ainda bastante complicado. No Livro Vermelho dos Mamíferos, publicado em 2023, um terço das 82 espécies avaliadas estão ameaçadas de extinção. São 27 as espécies que entram nas três categorias de ameaça: três estão “criticamente em perigo” (boto, orca e morcego-rato-pequeno); dez estão “em perigo” (incluindo o lobo, o lince-ibérico e vários morcegos) e 14 estão “vulneráveis”. Por seu turno, o urso-pardo continua classificado como “regionalmente extinto” em Portugal.

Já no caso dos peixes de água doce, o respetivo livro vermelho dá conta de 26 espécies nativas ameaçadas de extinção, de entre um total de 43 analisadas, além de notar a existência de 19 espécies exóticas.

Também foi recentemente publicado o Livro Vermelho dos Invertebrados, que versa sobre uma amostra 865 das cerca de 20 mil espécies de invertebrados identificadas em Portugal — incluindo todo o tipo de insetos, bivalves, crustáceos e animais como o caracol e a lesma. O estudo concluiu que cerca de 200 dessas 865 espécies estão ameaçadas de extinção, embora apenas 14 estejam protegidas por algum estatuto de conservação.

Mas não é só no reino dos animais que há ameaças. No que toca às plantas, a Lista Vermelha da Flora Vascular de Portugal Continental, publicada em 2020, identificou 381 espécies de plantas ameaçadas de extinção e 19 já extintas em Portugal.

Há, naturalmente, histórias de sucesso. O caso do lince-ibérico é, possivelmente, o mais conhecido exemplo de conservação de uma espécie ameaçada em Portugal. Espécie exclusivamente endémica da Península Ibérica, o lince-ibérico é, segundo a Liga para a Proteção da Natureza (LPN), um dos felinos mais ameaçados do mundo.

Fotografia de arquivo datada do dia 13 de maio de 2016, da libertação de um lince-ibérico Mistral, no Monte do Milhouro (Herdade da Cela), em Mértola

O lince-ibérico, possivelmente o mais conhecido caso de conservação de uma espécie em Portugal

NUNO VEIGA/LUSA

Se ao longo dos séculos o lince-ibérico existiu em abundância na península, ao longo do século XX a sua distribuição começou gradualmente a reduzir-se. A LPN explica que o declínio da população de linces-ibéricos se deveu, essencialmente, a dois fatores. Em primeiro lugar, o lince sofreu com o gradual desaparecimento do coelho-bravo, que é a principal presa do lince-ibérico, “como resultado de doenças virais (mixomatose, febre hemorrágica), do abandono das práticas agrícolas tradicionais e de algumas práticas cinegéticas desadequadas”. Em segundo lugar, o habitat natural do lince-ibérico sofreu, ao longo do século XX, uma forte deterioração devido não só a mudanças no clima, mas sobretudo à intervenção humana, que substituiu os clássicos “matagais e bosques mediterrânicos” por “espécies florestais exóticas” e de “crescimento rápido”, como o pinheiro-bravo e o eucalipto. A construção de grandes infraestruturas, como barragens e autoestradas, bem como a crescente frequência de incêndios florestais, impactou fortemente o habitat do lince, reduzindo as possibilidades de movimentação e levando à destruição de grandes porções de floresta. Além disso, a captura ilegal, os atropelamentos e a disseminação de doenças contribuíram significativamente para reduzir a população de linces-ibéricos.

Como resultado de todos estes fatores, em 2002 já só existiam 52 linces-ibéricos adultos na natureza. Em Portugal, a espécie esteve mesmo num “cenário de pré-extinção”. Caso sucedesse, seria “o primeiro desaparecimento de um felino na Europa nos últimos 2000 anos” e marcaria o fim do “único grande mamífero carnívoro endémico da Península Ibérica” — com um impacto assinalável nos ecossistemas ibéricos.

O lince-ibérico foi, por essa razão, a primeira espécie a captar a atenção do público para a necessidade de esforços de conservação. Em 1979, a Liga para a Proteção da Natureza promoveu a campanha “Salvemos o Lince e a Serra da Malcata”, que recolheu mais de 46 mil assinaturas e abriu caminho para a criação da Reserva Natural da Serra da Malcata, onde vivia na altura o principal núcleo de linces-ibéricos. Os esforços de conservação da espécie que se seguiram ao pico da situação, em 2002, levaram a um aumento substancial de linces-ibéricos: hoje em dia, já existem mais de mil espécimes na Península Ibérica e a espécie já deixou de estar “criticamente em perigo” para estar apenas “em perigo”. A comunidade científica acredita que dentro de poucos anos a espécie possa ser classificada apenas como “vulnerável” e, dentro de décadas, poderá mesmo deixar de ter qualquer estatuto de ameaça.

Na ponta oposta do espectro está o urso-pardo, o único mamífero classificado como “regionalmente extinto” em Portugal. Embora a nível global o urso-pardo não esteja ameaçado (está, globalmente, classificado como “pouco preocupante”), trata-se de uma espécie que já desapareceu totalmente de Portugal há muito.

Urso pardo

O urso-pardo está extinto em Portugal

LightRocket via Getty Images

Segundo o Livro Vermelho dos Mamíferos, o urso-pardo era um animal comum “de norte a sul do país” durante a Idade Média, ocupando um território que abrangia “os principais sistemas montanhosos a norte do rio Douro, Beira Interior e bacias do Tejo e Guadiana”. Todavia, foi desaparecendo gradualmente do território nacional e está formalmente dado como extinto desde 1843, ano do último registo de um urso-pardo em Portugal: nesse ano, foi abatido um urso-pardo em Montalegre, no Gerês. Foram, diz o Livro Vermelho, “séculos de declínio populacional devido a uma intensa perseguição e destruição do habitat”.

Contudo, desde o final do século XX, alguns esforços de conservação permitiram recuperar parte da população de ursos-pardos no norte de Espanha. Foi por essa razão que, em maio de 2019, um urso-pardo foi identificado no território português pela primeira vez em quase 200 anos: um indivíduo isolado terá entrado no Parque Natural do Montesinho, a partir de Espanha, o que não alterou a classificação de espécie extinta em Portugal, já que não há qualquer atividade de reprodução no país.

Nota: artigo atualizado às 18h15 do dia 3 de novembro, com as respostas da Quercus às perguntas que tinham sido remetidas pelo Observador e que não tinham chegado a tempo da publicação da primeira versão inicial deste texto.

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