Decorreu na passada quarta-feira o 44º aniversário do 25 de Abril. Felizmente, o evento é ainda celebrado pelo nosso Parlamento, apesar da vozearia furiosa das redes sociais contra o derrube da ditadura em 1974. Estas vozes furiosas identificam demagogicamente o 25 de Abril com o PREC terceiro-mundista que se lhe seguiu — ou, noutra versão, com a chamada corrupção generalizada que atribuem ao nosso presente regime democrático (em contraste com o alegadamente incorruptível regime de Salazar). Em contrapartida, nem todas as celebrações que ocorreram na quarta-feira (designadamente na Avenida da Liberdade) foram celebrações da democracia a que o 25 de Abril abriu caminho — e que apenas foi consagrada no 25 de Novembro de 1975, liderado por Mário Soares, Sá Carneiro, Freitas do Amaral e Ramalho Eanes.

Uma palavra ou duas são devidas a este respeito.

Em primeiro lugar, uma palavra sobre a ditadura de Salazar e Caetano: era simplesmente um fenómeno terceiro-mundista. Podemos compreender o Estado Novo entre 1926 e 1945: foi uma resposta moderada ao autoritarismo radical da I República, bem como uma versão muito moderada e não-revolucionária dos autoritarismos revolucionários que assolaram a Europa continental nas décadas de 1920/30 — e que culminaram no fascismo italiano e no nazismo alemão.

Mas, por que motivo permaneceram Portugal e Espanha em excepcionais ditaduras numa Europa ocidental anti-soviética, convertida à democracia depois da vitória anglo-americana em 1945? É um mistério a que, não sendo historiador, não me atrevo a tentar responder. No plano das ideias políticas, no entanto, não creio que possa haver grandes dúvidas: o regime que subsistiu entre nós depois de 1945 e até 1974 foi simplesmente expressão de um atavismo terceiro-mundista (se a expressão me é permitida pelos nostálgicos do salazarismo e pelas actuais patrulhas de uma certa esquerda politicamente correcta, admiradoras militantes do Terceiro Mundo, designadamente islâmico e anti-judaico/cristão).

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Atavismo terceiro-mundista é também a designação adequada ao processo revolucionário que se seguiu após o 25 de Abril de 1974 até ao 25 de Novembro de 1975. Em parte, um atavismo é resultante do outro: num país dominado pela censura prévia durante 48 anos, a tentação dos nativos “anti-fascistas verdadeiramente revolucionários” (onde me incluí na altura) era impor outra censura prévia de sinal contrário. Basicamente, não conheciam nem concebiam regimes sob o império imparcial da lei e sem censura — ou a dos outros, ou a deles próprios. Esta é, em versão atenuada, ainda hoje a mentalidade do Partido Comunista e do Bloco de Esquerda, que se exprime sobretudo na sua retórica anti-capitalista e anti-ocidental.

Mas há algo mais fundo a dizer sobre esta matéria. A democracia moderna emergiu no Ocidente através de duas experiências muito diferentes: uma delas emergiu das revoluções inglesa de 1688 e americana de 1776; a outra emergiu da revolução francesa de 1789. Manda um polido e sábio ecumenismo democrático — que eu subscrevo no plano político e diplomático — que não andemos hoje a insistir nestas diferenças. Mas, no excêntrico e rarefeito plano das ideias, talvez não seja pior recordar algumas dessas diferenças.

E houve algumas diferenças cruciais.

A revolução francesa de 1789 prometeu dar o governo ao “povo” — retirando-o às “oligarquias” do rei e da aristocracia. Se o governo pudesse passar para o “povo”, ele podia e devia ser absoluto — porque era um novo governo em nome do “povo”, isto é, da igualdade, e não das “oligarquias”, isto é, da desigualdade. Em nome do “governo do povo”, 1789 anunciou uma nova era de revoluções ardentes que foram ardentemente seguidas por várias “revoluções liberais” na Europa continental e na América Latina. A revolução soviética de 1917 reclamou-se também da revolução francesa de 1789 — que se propôs levar até ao fim através da instauração da “ditadura do proletariado” (ou seja, o “autêntico governo do povo”).

Esta ideia peculiar nunca passou pela cabeça dos revolucionários relutantes ingleses de 1688 ou dos igualmente relutantes revolucionários americanos de 1776. Basicamente, e sobretudo, eles não eram revolucionários — basicamente sabiam que todos sabemos como começam as revoluções, mas ninguém sabe ao certo como acabam. Sentiram-se relutantemente empurrados para a revolução pela impossibilidade de reformar sem revolução. Por esta decisiva razão, eles não pretendiam substituir o governo absoluto do rei ou da oligarquia pelo governo absoluto em nome do povo. Eles simplesmente queriam abolir qualquer tipo de governo absoluto — e, na linguagem da época, restaurar a Antiga Constituição medieval de governos limitados pela lei e responsáveis perante o Parlamento, consagrada na Magna Carta de 1215. Essa Antiga Constituição, de crucial inspiração cristã, sempre permitira mudanças graduais no Parlamento, sem revolução.

Estas diferenças, aparentemente abstractas, tiveram uma concreta consequência: os revolucionários relutantes anglo-americanos de 1688 e 1776 morreram tranquilamente na cama; os revolucionários ardentes franceses de 1789 mataram-se sucessivamente uns aos outros.

Na origem destas diferentes concretas consequências encontram-se dois conceitos de democracia. Para os revolucionários ardentes, a democracia é um modelo final de sociedade a atingir. Qualquer discordância relativamente a esse modelo final é percepcionada como “traição”. Para os revolucionários relutantes, a democracia é apenas um sistema de regras que garante no Parlamento a concorrência e alternância, pacíficas e civilizadas, entre proponentes de políticas diferentes e rivais.

Este confronto entre dois conceitos de democracia foi vivido entre nós no pós-25 de Abril. A vitória dos revolucionários relutantes a 25 de Novembro de 1975 permitiu que os revolucionários ardentes possam hoje desfilar na Avenida da Liberdade. Mas, se estes últimos tivessem vencido, não teríamos tido a celebração pluralista que felizmente tivemos no Parlamento.