1. Será que nunca aprendemos nada? Será que nunca somos capazes de reconhecer que houve escolhas erradas que produziram resultados errados?

Não posso deixar de fazer a pergunta depois de ter ouvido a entrevista de António Costa à TVI. E não posso deixar de a fazer porque reivindicar 99% de sucesso quando estamos perante uma calamidade que ceifou 64 vidas não permite prolongar mais o luto – pelo contrário: é o luto que nos chama a falar e escrever.

E o que disse António Costa? Passo a citar: “A estratégia que se definiu foi dar prioridade absoluta à primeira intervenção para controlar o fogo no momento em que nasce. E é isso que explica que de 156 haja dois que tenham escapado ao controle, o que significa que nos outros houve sucesso nessa intervenção” (um pouco depois do minuto 7:00). Ou seja, disse o primeiro-ministro noutro momento, “o melhor dos desempenhos não impede o pior dos resultados”. E bem sabemos qual foi o pior dos resultados.

Costa referir-se-ia mais duas vezes ao número 156, como se ele fosse motivo de orgulho. Não, não é: é antes sinónimo do fracasso da estratégia que ele mesmo definiu quando era ministro da Administração Interna. A estratégia de apostar tudo em acabar rapidamente com aquilo a que os técnicos chamam “ignições” para impedir que um fogo fique fora de controle. Parece lógico, mas não é. E já não era em 2006, quando se deu prioridade política à protecção civil em detrimento do reordenamento da floresta.

Basta pensar no que se passara em 2003, o pior ano de incêndios em Portugal, quando arderam 440 mil hectares. Nesse ano houve sensivelmente 20 mil “ignições”, sendo que em 19.800 (ou seja, em 99% delas) arderam menos de 100 hectares. O problema esteve no 1% que escapou ao controle: nesses 200 fogos desapareceram 400 mil hectares.

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A proporção, como se vê, não é muito diferente da registada no sábado passado. O balanço neste último caso ainda é pior, pois houve 64 mortos, muito, muito mais do que em qualquer fogo florestal jamais ocorrido em Portugal.

2. Devo confessar que julgava não ser necessário escrever de novo sobre estes problemas. Fi-lo já tantas vezes (ainda o ano passado em Estou cansado das inanidades que se dizem sobre incêndios, ou em 2010 em Aconteceu o que tinha de acontecer: o país a arder) que sabia que me ia repetir. No entanto, depois de ouvir o primeiro-ministro, depois de escutar os responsáveis da Protecção Civil, depois de aturar o inevitável Jaime Marta Soares da Liga dos Bombeiros Portugueses, não é possível deixar de regressar ao tema.

Primeiro que tudo para contrariar as prioridades de um sistema de controle dos fogos florestais que quase só dá “prioridade absoluta” à intervenção inicial, pois tal corresponde a não perceber que basta escaparem a esse controle meia dúzia de fogos para uma catástrofe acontecer. Para além de que, face à dimensão do nosso território, às características da nossa floresta e à dimensão das nossas forças de bombeiros, será sempre difícil ter em todos os fogos os meios necessários para garantir que nenhum deles escapa ao controle. No fogo de Pedrógão Grande, cujo primeiro alerta surgiu pelas 14h43 de sábado, às 16h30 ainda só lá estavam 105 homens, 33 viaturas e um meio aéreo. Duas horas depois ainda só eram 156 homens, 46 viaturas e três meios aéreos. Se pensarmos que mais tarde chegaram a estar mobilizados, pelas 16h10 de domingo, 1600 homens, 500 viaturas e 18 meios aéreos, é forçoso interrogarmo-nos sobre se foi realmente feito tudo o que podia ser feito no ataque inicial ao fogo, aquele que eventualmente o poderia ter dominado.

Da mesma forma é inquietante abrir o Google Maps, localizar o troço de estrada em que morreram 47 pessoas, e verificar que ele dista apenas um quilómetro do cruzamento do IC8 que a GNR estava a controlar. Ou ler como falhou de novo o SIRESP, o mais controverso dos sistemas de comunicações alguma vez adquirido pelo Estado português. Ou ainda constatar que, para além dos que tiveram o trágico destino de serem apanhados na armadilha da “estrada da morte”, registaram-se ainda mais 16 mortes em várias aldeias que não foram evacuadas a tempo – o que significa que não houve em Pedrógão e em Figueiró dos Vinhos a mesma acção enérgica a que depois assistiríamos em Góis, onde se chegou a dar ordem para retirar toda a população de uma trintena de aldeias.

Podia continuar a somar perplexidades e a acrescentar perguntas a que as autoridades vão ter de responder. Não podemos ficar à espera do fim da “época de incêndios” (que estranho conceito este…) para ter respostas em vez de evasivas como as que temos ouvido nos últimos dias.

Mas há algo que me preocupa muito mais. E preocupa precisamente porque ouvi a entrevista do primeiro-ministro.

3. A história não deve ser reescrita, os erros do passado não devem ser ignorados. É por isso mau sinal ver António Costa mostrar orgulho naquilo que fez em 2006 e 2007, quando era ministro da Administração Interna.

Na altura foi presente ao governo um Plano Nacional de Defesa da Floresta contra Incêndios que tinha por base um sólido relatório técnico. Quando comparamos o que era proposto nesse relatório, sobretudo no que respeita à gestão da floresta e à coordenação entre os serviços que tratam da floresta todo o ano e aqueles que só lá vão para os incêndios, e o que nessa altura foi aprovado pelo governo (através da Resolução do Conselho de Ministros nº 65/2006), verificamos que se procedeu logo de entrada a uma “cura de emagrecimento”. Depois, quando verificamos o que realmente se passou, constatamos que os recursos foram quase todos canalizados para a Protecção Civil (incluindo os seus meios aéreos onde tantos contratos duvidosos seriam feitos nestes últimos dez anos), ficando à míngua tudo o que respeitava à floresta, concluímos que só por hipocrisia se pode dizer hoje, como António Costa disse na entrevista, que essa opção se destinou “a comprar tempo para a reestruturação da floresta”. Como seria isso possível se a protecção civil ficou com quase todos os recursos? Como se nunca mais ninguém (nos governos do PS e no do PSD/CDS) ligou verdadeiramente ao Plano, chegando-se agora ao ponto caricato de saber que o último relatório de acompanhamento (relativo a 2011/12) estava esquecido há vários anos?

A história de como pouco ou nada se fez é conhecida, e recordámo-la no Observador há menos de um ano. Mais complicado, e mais preocupante, é perceber que a nova “reforma da floresta” que já justificou dois conselhos de ministros e de que António Costa tanto fala continua a ficar muito aquém do necessário. Têm-no dito os especialistas, nomeadamente os académicos que mais têm estudado a nossa floresta e melhor a conhecem. Os melhores de entre eles têm passado pelas televisões, pelas rádios e pelos jornais (incluindo o Observador) nos últimos dias. Por favor escutem-nos.

Uma floresta leva décadas a crescer. Uma paisagem rural leva ainda mais tempo a adaptar-se à nova realidade que desejamos. Nós já perdemos décadas, não se justifica a pressa que o Presidente da República sugere ao Parlamento. Voltem, pelo menos, a ler os documentos de 2006. Vão ver que está lá a ambição e a visão necessárias para um bom ponto de partida legislativo — uma ambição e uma visão que revelam a estreiteza da abordagem feita pelo primeiro-ministro na sua entrevista à TVI.

Quanto mais não seja porque não podemos viver com 99% de sucesso e um balanço de 64 mortes.