Num artigo que escreveu sobre as eleições norte-americanas, Thomas Wright, especialista da Brookings, descreveu as tradições que compõem o gabinete Biden para a política externa. Há três grupos: os “restauracionistas”, os “reformistas” e os “progressistas”. Os primeiros, e aparentemente predominantes, são os herdeiros de Obama, aqueles que gostariam de voltar à política externa do anterior presidente democrata. Diria que são os prudentes: querem gerir a ordem internacional com suavidade, ser incrementalistas nas decisões, não gostam da ideia de competição e preferiam voltar a ver o status quo ante no Médio Oriente.
Os “reformistas” são mais ousados: acham a ortodoxia de Obama ultrapassada, pensam que o sistema internacional os obriga a correr riscos (calculados) no confronto com a China e favorecem uma visão mais global da política externa. Acreditam que é necessária uma união de democracias, mesmo que isso aborreça Pequim e Moscovo, até porque só assim conseguirão transformar a economia internacional, que lhes parece um ponto chave para o relançamento dos Estados Unidos. E estão muito mais preocupados com o que acontece na Ásia do que com o Médio Oriente.
Os “progressistas” são mais isolacionistas. Gostariam de ver baixar os gastos na Defesa e ver os Estados Unidos regressar à agenda multilateral das organizações internacionais que Trump abandonou. A sua preocupação principal é a política interna.
Para Joe Biden também, mas não da mesma maneira. O presidente percebeu que há dois elementos essenciais para a reconstrução da unidade da América: o reforço da classe média – daí que esteja sempre a repetir que a política externa norte-americana tem como principal objetivo fortalecê-la – e um novo papel para os Estados Unidos no sistema internacional, na liderança e, de preferência, com inimigos comuns. Nada une tanto uma nação do que uma ameaça que diga respeito a todos.
Estas intenções ficaram mais explícitas no primeiro grande discurso de política externa que Biden fez, esta semana, no Departamento de Estado, a casa da diplomacia americana, esquecida e desorçamentada por Trump. O discurso foi para uso interno e externo. Acalmou restauracionistas, dizendo que o Médio Oriente não está esquecido (especialmente o Iémen e a Arábia Saudita, que continua a ser pressionada pelo Irão); sossegou progressistas, garantindo-lhes o regresso ao Acordo de Paris e à Organização Mundial de Saúde, mas centrou-se essencialmente nos seus planos – inspirados pelos reformistas – para gerir aquilo a que chama o regresso da América (“America is back”) ao sistema internacional.
Do discurso ressaltam cinco elementos fundamentais. O primeiro é precisamente o retorno norte-americano à liderança internacional. Biden ainda não explicou como vai ser possível em retraimento estratégico, até porque anunciou uma série de compromissos militares que são para manter (inclusive na Alemanha), mas centrou-se na razão pela qual a liderança americana é necessária. Os valores dos Estados Unidos são imprescindíveis no mundo. De uma forma interessante, Biden deixou cair expressões como “democratização” ou mesmo “multilateralismo”. Passou a caracterizar os “valores democráticos americanos” como o “aproveitamento de oportunidades” para os fazer valer; falou de “direitos universais”, que se saldam no “respeito pelo Estado de Direito” e pelo “tratamento de todas as pessoas com dignidade”. A América quer estar no mundo como um líder liberal, mas desta vez sem pretensões de expansão democrática para outros cantos do mundo. O discurso de Biden regressa aos tempos da Guerra Fria, nos quais ele se formou politicamente e aos quais terá mesmo que voltar depois do fim do momento unipolar.
O segundo ponto importante foi o sublinhado permanente na importância da diplomacia. Uma diplomacia musculada, diga-se de passagem, que mais uma vez lembra o período bipolar. Não há contemplações nas críticas aos adversários, há espaço para negociar com eles questões fundamentais para manter o mundo em segurança. Veja-se o telefonema a Putin, sobre o qual se escreveu a semana passada, que é um exemplo bem ilustrativo do que esta diplomacia significa.
O terceiro ponto é que a “América não o pode fazer sozinha”. Não é uma questão de humildade, é uma questão de realismo político. Biden percebeu que o sistema internacional em transição só lhe permite ser líder de uma ordem liberal separada e defensiva, mas que esta é imprescindível para fazer face à China e à Rússia. Por várias razões: porque os EUA já não têm o poder que tinham e precisam efetivamente de aliados (especialmente asiáticos) para fazer travar o crescimento de Pequim; porque o liberalismo democrático é a chave para a legitimidade que Biden procura para se impor internacionalmente (a democracia é um regime mais benigno que a autocracia interna e externamente); porque é preciso regressar à identidade perdida nos anos Trump, uma vez que uma potência sem identidade é uma coisa que não existe; e porque as organizações internacionais estão obsoletas – especialmente as que regulam a economia – e são necessários apoios firmes para as transformar. Nos últimos três pontos, o papel da Europa é determinante (que esta saiba percebê-lo).
O quarto ponto é a determinação de chamar os inimigos pelos nomes: a China, pelos seus abusos económicos e ações coercivas, ataques aos direitos humanos, à propriedade intelectual e governança global. A Rússia, pelas suas atitudes agressivas, interferências nas eleições americanas, ciberataques e envenenamento dos seus cidadãos. E os crescentes autoritarismos, que tendem a insuflar os rivais americanos e a enfraquecer os Estados Unidos da América.
Nenhuma destas posições é estranha aos americanos: liderança internacional, diplomacia de contenção, alianças permanentes, rivais naturais. Esta não é a agenda Obama, um presidente de transição a tentar compreender o mundo que lhe tinha calhado em sorte. É a agenda Biden, um Cold Warrior experiente que sabe ler as complexidades do mundo que tem de enfrentar. É uma agenda de política externa clássica para um mundo em competição, onde os nossos destinos se vão decidir nas próximas décadas. É uma agenda que a opinião pública pode apoiar. É uma agenda que pode bem ser bipartidária, caso os trumpistas sejam subalternizados no Partido Republicano.
Falta-nos um quinto ponto. “Já não existe uma linha brilhante entre política externa e interna”, disse Biden. Tudo o que se fizer lá fora é para beneficiar os americanos, não só nas funções clássicas do Estado – providenciar segurança aos seus cidadãos –, mas também do ponto de vista da prosperidade económica e do bem-estar social. Biden sabe a América que tem, dividida e zangada. Quer chegar ao maior número de americanos possível. A devolução destes valores, que nunca foram verdadeiramente contestados, e a recuperação do prestígio internacional americano são caminhos que podem ajudar também essa causa. Não é tudo, mas é um começo.
A agenda de Biden tem riscos. Está dependente de uma cooperação que não pode ser dada como adquirida e tem tudo para aborrecer a China e a Rússia, tornando-as mais agressivas. Mas é clara, pertinente e firme. E se bem gerida, pode restaurar muito do que já estava dado como perdido. E só isso, não é coisa pouca.