A recusa da reforma da Saúde está a reformar a Saúde. Ao maior orçamento de sempre correspondem os piores resultados da história do Serviço Nacional de Saúde (SNS). A aversão à reestruturação do SNS verificada nos últimos anos moribundizou-o. De tal forma que parece que já não trabalho no SNS mas sim no Medicaid, já que, cada vez mais, quem tem folga orçamental procura cuidados de saúde fora deste serviço. Cria-se, assim, um sistema informal de acesso à saúde financiado por seguros de saúde ou pagamentos diretos pelo utilizador. Um sistema à imagem do americano, numa contradição à posição reiterada pelo Ministério da Saúde em afastar o setor privado e o setor social do SNS.

O SNS, que foi responsável por enormes ganhos em saúde em Portugal, é, desta forma, diminuído a um serviço deteriorado em recursos e capacidade, que promove a iniquidade e que não dá uma resposta de qualidade aos cidadãos.

Estamos portanto a transformar, mas por inércia, sem planeamento, sem intenção e sem atenção ao paradigma e às necessidades atuais. Um processo em tudo diferente do que se lavrou nos anos que precederam a publicação da Lei n.º 56/79, de 15 de Setembro, e que vem pôr em causa o direito à proteção da saúde.

Diariamente assistimos à sentença do SNS, que de parte maior e central de um dos sistemas com melhor desempenho do mundo é condenado a apresentar-se agora à imagem do sistema de saúde americano, um dos mais ineficientes.

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É já conhecida a dificuldade crescente em fixar recursos humanos. Mas não são só os profissionais de saúde que estão a desistir do SNS. Os próprios utentes estão. A proporção de gastos out-of-pocket com saúde aumentou em mais de cinco pontos percentuais desde 2010 (OCDE, 2021), perfazendo um total de mais de 30% do financiamento do sistema de saúde, quase o dobro da média da União Europeia (UE).

Em resultado, apenas cerca de 50% da população portuguesa reporta estar bem de saúde (face a mais de 75% da população da UE) e este número desce para 38% se estivermos a falar da fração da população portuguesa com menores rendimentos. (OCDE, 2019)

A resposta tarda. Mais dinheiro não funcionou e da parte do Governo parece existir inércia e desorientação na apresentação e implementação de soluções.

Uma série de documentos centrais foram lançados nos últimos anos – como a nova Lei de Bases da Saúde, um novo Plano Nacional de Saúde, novo Estatuto do SNS, entre outros – com ideias e orientações contraditórias entre si.

Ao mesmo tempo são lançadas medidas avulsas, como a da criação de novas Unidades Locais de Saúde e o processo de transferência de competências para os municípios. Um rol de mudanças estruturais desestruturadas, desarticuladas e comunicadas aos implicados pelos media. Basta ver que o mesmo documento que decreta a criação da Direção Executiva do SNS (DE-SNS) atribui às Administrações Regionais de Saúde (ARS) o desígnio do planeamento da saúde, tendo a DE-SNS, meia dúzia de meses depois da sua publicação, anunciado o fim destas estruturas. Traduzindo, há um esvaziamento de ideias e estratégia por parte da tutela que, a este ponto, parece depender totalmente do oxigénio que a DE-SNS lhe possa trazer.

O SNS foi central na resposta à pandemia, mas parece ter agravado a sua patologia de base nesse processo. O excesso de mortalidade torna isso evidente. Não tendo sido a causa da doença, a COVID-19 foi um fator de agravamento que acelerou um prognóstico que já era reservado.

Para o futuro, a começar já hoje, devem ficar bem estudadas as lições. A única maneira de nos prepararmos contra a próxima emergência de saúde pública é estabelecendo um sistema de saúde resiliente, que tem de incluir um sistema de vigilância epidemiológica robusto.

Ao contrário da COVID-19, que foi um fator transitório, existem outros com grande peso e que vieram para ficar, como o envelhecimento da população, o aumento do índice de dependência e a prevalência das doenças crónicas multifatoriais.

Doravante, a única solução é a prevenção da doença e a promoção da saúde. Isto é sinónimo de cuidados de saúde primários, de aposta na Saúde Pública e na Medicina Geral e Familiar. Modelos de organização centralizados nos hospitais, como a experiência nos demonstra em relação às Unidades Locais de Saúde (ULS), são perigosos e é imperativo que haja prudência com a aplicação deste tipo de organização (o Presidente da República concorda comigo).

Falta ainda considerar outras ameaças comprovadas, como a da resistência aos antimicrobianos (que já mata mais de 1.000 pessoas por ano em Portugal e será responsável por 40.000 óbitos em 2050) ou o impacto das alterações climáticas na saúde. Ademais, existem ameaças eventuais – e com potencial catastrófico – como uma nova versão do terramoto de 1755 ou uma nova pandemia.

Tratar a Saúde é emergente e, certamente, desafiante. Negar a reforma do SNS é negar o SNS. Por isso é chegada a hora de os médicos devolverem à tutela o incentivo à resiliência. Haja coragem. E, acima de tudo, haja Saúde.