Após a fome se ter alastrado na Rússia no Inverno de 1921, das greves, motins e algumas revoltas que ocorreram um pouco por todo país, Lenine achou por bem dar uma folga à população. A sua ideia foi implementar um programa económico que permitisse às pessoas deterem os seus pequenos negócios, comprarem os produtos que precisassem e venderem os que produzissem. O plano estabelecia também que os camponeses fossem tributados pelos seus rendimentos, ao invés de lhes ser confiscado o que produziam. Lenine não acreditava na liberdade individual nem na livre iniciativa, mas percebeu que precisava que o povo fosse livre por uns tempos para que a economia se equilibrasse. Ou pelo menos que saísse da situação caótica em que se encontrava sob pena de o regime cair de vez.

Os resultados foram surpreendentemente bons. Há 100 anos a tragédia da experiência comunista ainda era inimaginável e, com o novo plano económico, a população julgou que os governantes se tinham apercebido do óbvio, que o sonho comunista não passava de uma ilusão de intelectuais burgueses. Finalmente o país seria um pouco mais livre, após o cancelamento de algumas das restrições provenientes do tempo dos czars.

Infelizmente não foi o que sucedeu. Tanto Lenine como os seus companheiros tinham como objectivo libertar a Rússia da opressão que historicamente a submetera. Também a quiseram democratizar. Mais: quiseram descentralizá-la. Nesse sentido concederam autonomia às regiões não russas com o intuito de pôr termo à opressão da população russa. Os objectivos pareciam dignos; o problema foi não serem verdadeiros. Os dirigentes comunistas quiseram democratizar a Rússia, mas não queriam que o povo escolhesse livremente os seus governantes, apenas que deixasse de depender das hierarquias estabelecidas pela tradição e pela história e passasse a responder directamente a Moscovo; os dirigentes comunistas desejavam a autonomia das repúblicas não russas como forma de aplacar o descontentamento das populações fartas da autocracia dos czares mas, na verdade, os novos dirigentes comunistas dessas repúblicas também respondiam directamente às instruções de Moscovo. Sob pretexto da descentralização e da autonomia cortaram-se poderes intermédios para só restar o Kremlin. Dentro da mesma lógica de aparência, os dirigentes comunistas decidiram abrir escolas, contratar professores, o analfabetismo recuou e a literacia subiu. Sucede que o pretendido não foi que as pessoas, com mais conhecimentos, se tornassem capazes de pensar e de escolher de acordo com a sua vontade, mas que simplesmente lessem os panegíricos comunistas, os únicos que podiam ser impressos e que circulavam livremente. Lenine sabia que a mensagem comunista não chegava à maioria da população porque esta não sabia ler. Assim, foi preciso ensiná-la a ler para que lesse o que o partido escrevia. Moscovo pretendeu aumentar a produção agrícola, mas não o fez para que os agricultores ganhassem mais dinheiro e escolhessem os bens que precisavam ou quisessem consumir. O objectivo, mais simples embora não tão modesto, cingia-se a que a comida chegasse às cidades, às fábricas pejadas de mão-de-obra barata (de agricultores cuja fome afastava dos campos) e que dotavam o Estado de produtos que se vendiam no estrangeiro.

Dentro da mesma lógica a política da paz comunista à época não passou de uma farsa. Uma forma cínica de salvar o regime que sucumbiria perante uma invasão alemã em larga escala. Trotsky, que nas suas deslocações a Brest-Litovsk se inteirou do estado caótico das defesas russas, ainda tentou ganhar tempo desconcertando as potências centrais com a fórmula do nem guerra nem paz, ao mesmo tempo que Moscovo incentivava uma revolução bolchevique em Berlim. A revolução não aconteceu e no Inverno de 1918 o tratado de paz acabou por ser assinado nos termos impostos pelos alemães.

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A aparência da paz é idêntica à aparência da democracia. Os bolcheviques não pretendiam a paz, mas tempo para, através da revolução, destituírem o governo alemão. O resultado foi o nazismo e uma nova invasão. A democracia que propugnavam pouco ou nada tinha a ver com democracia liberal em que vivemos; simplesmente traduzia-se na aceitação do decidido pelo Politburo onde os consensos eram conseguidos por coerção. Bukharin, Zinoviev e Kamanev que o digam. Estes sofreram as agruras da repressão embora não esqueçamos que (à semelhança de Trostky) só se importaram com esta quando foram reprimidos e não enquanto reprimiam.

Recordar o passado é importante porque as aparências continuam. A da paz, como temos visto com a posição do PCP relativamente à invasão da Ucrânia pela Rússia, mas também a relativa ao tipo de democracia que o PCP e o Bloco de Esquerda continuam a propagar em nome do 25 de Abril. Apesar do que estes dois partidos repetem à exaustão é importante recordar que não há democracia nem liberdade sem eleições livres, sem a separação dos poderes do Estado, sem liberdade de imprensa e de pensamento. Tal como também não há democracia sem o reconhecimento que a liberdade é de cariz individual. Que esta nasce com e para as pessoas. São estas o seu princípio e o seu fim último. Sem respeito pelas liberdades individuais não há Estado de Direito, não há sociedade livre digna desse nome e das pessoas que a compõem; não há justiça nem sequer segurança. Da mesma forma não há política de educação nem cuidados de saúde funcionais e minimamente justos.

Há quem acredite que foi Estaline quem deturpou o projecto comunista e que, sem ele, o ideal marxista-leninista teria sido um sucesso. Não é verdade. Estaline foi apenas mais violento que Lenine, Trostky e os demais. A violência de Estaline só foi possível porque tinha as suas bases no pensamento de Lenine e também porque num estado totalitário não há forma de controlar o poder do mais implacável. Esse controlo só se consegue com a separação de poderes dentro do Estado, com a democracia, a liberdade de imprensa, de associação, de pensamento e da liberdade económica num mercado livre. Com as liberdades que nascem da liberdade individual. A moderação não é possível sem democracia, esta não existe sem uma ideia de liberdade que se esvazia se não for individual, se não se alicerçar nas pessoas. Sem o respeito pela liberdade individual existirão dados estatísticos que nos dizem que há obra, mas uma que vale muito pouco ou mesmo nada.