À entrada da Apsley House, em Londres, há uma estátua de Napoleão Bonaparte praticamente nu e à qual os ingleses não prestam qualquer importância. Com ‘Marte, o pacificador’, Antonio Canova retratou Napoleão como um imperador romano, um novo César, um novo deus da paz. Napoleão idolatrava César e Alexandre, mas acima e tudo, César. Tinha também um interesse pelas artes, não só como instrumento de propaganda do regime, mas porque nutria um gosto genuíno pela pintura, a escultura, o teatro e a ópera. Se não tivesse lido história e os clássicos, não teria desenvolvido o conhecimento da natureza humana que tão bem o caracterizava e que o ajudou a ser quem foi e a fazer o que fez. Andrew Roberts descreve bem essa faceta de Napoleão quando, em 1811, o imperador recusou a escultura de Canova e a atirou para as catacumbas do Louvre. As suas razões terão sido duas, a primeira porque Napoleão, com 42 anos e uma barriga saliente, receou a troça dos parisienses e, a segunda, porque achou que, até podia ser imperador e prender o Papa, mas jamais lhe seria permitido comparar-se com Deus.

Olhamos para a história e vemos factos e feitos, ganhos e perdas, vitórias e derrotas e nem sempre denotamos a evolução lenta e subtil do entendimento. O neoclassicismo do século XVIII é fruto do Iluminismo e de um ressurgimento do interesse pela Antiguidade, numa altura em que as monarquias absolutas e o direito divino dos reis era posto em causa. A democracia ateniense, a república romana ou até o apelo directo dos Césares ao povo, numa ligação destes a um deus, surgem como possíveis respostas, embora haja algo que, com o cristianismo, não se admite mais: Deus é Deus e mais ninguém. Infelizmente, não damos o devido reconhecimento ao impacto que esta percepção teve na formação dos conceitos que, actualmente, temos da liberdade, da igualdade e da democracia.

Se há ponto que me impressiona na Reforma Protestante iniciada por Lutero é a relevância do ‘eu interior’, não no sentido de a relação com Deus ser definida por mim, mas porque a aceitação (ou não) da existência de Deus é minha e tão só minha. A fé é individual e não imposta; vale por si mesma, pelas minhas acções individuais e não como mero espectador de um evento de massas. Mas se Lutero deu este contributo, o catolicismo nunca esqueceu a relevância do perdão. Por alguma razão a Páscoa é a comemoração mais importante dos católicos. O grande mistério não reside tanto no nascimento de Jesus, mas na sua morte e posterior ressurreição. No perdão e na esperança.

O que é que isto tem a ver com Napoleão recusar ser retratado como um deus? Mais do que possamos imaginar. A verdade é que não há quem possa igualar o feito do perdão e da esperança. Podemos ser fantásticos e poderosíssimos, mas ninguém é capaz de perdoar e seguir em frente. Podemos tentar, mas o sucesso não será completo. E, ao não conseguirmos algo tão simples e humanamente difícil, qualquer comparação com Deus fere a nossa dignidade como seres humanos. O máximo que conseguimos almejar é a amizade de Deus, possibilidade que nos é dada neste Domingo de Páscoa e que, com sorte, vivenciamos com algumas, pouquíssimas pessoas.

Martin Gayford é crítico de arte na ‘Spectator’ e, entre Novembro de 2003 e Abril de 2005, pousou para Lucian Freud. O resultado da experiência consta de um pequeno diário, ‘Man with a Blue Scarf’. Gayford não se despiu, mas na passagem de 7 de Abril de 2004 relata que Freud, uns dias antes, terminara às cinco da madrugada ‘David and Eli’, poucas horas antes da exibição na Wallace Collection. David Dawson foi assistente de Freud e um dos seus inúmeros modelos. Algumas das filhas do pintor, também. Os nus de Freud são humanos, de um realismo extremo se entendermos que o que se vê é a pessoa, o seu interior, a alma, e não o corpo, um corpo de quem se envergonha por ter engordado e com quem ninguém se choca porque qualquer parecença com Deus é pura coincidência. Se esta existe é na simplicidade da mensagem do que podemos ser enquanto pessoas: amigos de quem nos perdoa e nos dá esperança.

Por algum motivo, o falso pacificador está esquecido debaixo da escadaria de um palácio.

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