O historiador Ronald Syme descreveu Caio Asínio Pólio (cônsul e senador da República Romana) como um republicano pessimista e um homem honesto. ‘The Roman Revolution’ é um dos livros mais interessantes e controversos sobre a queda da República e o surgimento do Império sob a égide de Augusto. A tese de Syme era que a República e as suas instituições se tornaram desadequadas e o comportamento dos políticos tornou inevitável o seu fim.

Ronald Syme descreve Pólio como um recém-chegado à aristocracia romana que se preocupava com a queda da ‘Libertas’, o papel das instituições políticas para a não submissão ao despotismo. Também um historiador, Pólio escreveu sobre a guerra civil até à vitória de Augusto em Filipos. Ao apoiar o lado derrotado ficou esquecido e a história preferiu a oratória de Cicero, que contou a sua versão dos acontecimentos. Pólio jamais se vergou à vontade de Augusto, não se conformou com a resultado da deterioração das instituições e, a fim de não perder a vida, calou-se e afastou-se até morrer no ano 4 da nossa era.

Nos últimos dias li inúmeros textos a alertar que a realidade política espanhola é diferente da portuguesa e que não há lições a tirar dos nossos vizinhos. Não questiono este ponto, mas quero salientar que o exemplo de Caio Asínio Pólio é importante para compreender o que está a suceder na Espanha e já aconteceu em Portugal. Ou seja, se não há lições a tirar de Espanha, temos várias a ir buscar a Roma.

Pedro Sánchez prepara-se para não deixar Feijóo governar nem que tenha de se associar a forças políticas com um passado terrorista e contrárias à integridade do território espanhol. Note-se que, em 1993, Felipe Gonzalez não teve maioria absoluta, mas formou governo; José Maria Aznar não conseguiu a maioria absoluta em 1996, mas governou até às eleições de 2000; José Luis Zapatero não a conseguiu em 2004 nem em 2008, mas concluiu duas legislaturas. Em Portugal, Aníbal Cavaco Silva venceu em 1985 com menos de 30% e o seu governo durou dois anos. Foi-lhe dada a oportunidade de governar devido a uma regra que Mário Soares relevava e que González respeitou em 1996. Faziam-no não só por respeito dos resultados eleitorais, mas para promover a moderação do discurso. Bem sei que quando votamos nas legislativas escolhemos deputados, embora num sistema sem círculos uninominais essa verdade não seja assim tão verdadeira. Mas nem é esse o ponto que quero analisar aqui. O pretendo referir é isto: o não respeito de uma regra não escrita e que era praticada por uma questão de princípio tem consequências. Há uma quebra na qualidade do comportamento cívico e democrático, uma queda no funcionamento das instituições. Quando não interessa ganhar, mas chegar ao poder perde-se o respeito da vitória e desaparece a dignidade da derrota. À primeira vista continua tudo igual, mas com o passar do tempo percebemos que não. Essa deterioração existe e traduz-se numa radicalização crescente, no facto da facção moderada do PS estar praticamente destruída, na arrogância do Primeiro-Ministro que desrespeita o que não lhe interessa, nas narrativas dos ministros mais imaginativos, na derrota de Fernando Medina em Lisboa que o catapultou para a pasta mais importante do governo.

Imagino que muitos dos que lêem estas linhas dirão que não ultrapassei 2015. Nem é isso que está em causa porque a decisão de António Costa nessa altura foi legítima. Sucede que teve custos com consequências cada vez mais visíveis. A tese de Syme era que a República e as suas instituições se tornaram desadequadas às necessidades de Roma e a sua queda se tornou inevitável. Mas Syme escreveu em 1939 e a época tem por hábito dar forma ao argumento. Já na década de 70, outro historiador, Erich Gruen (‘The Last Generation of the Roman Republic’, um livro que nos coloca por dentro do funcionamento das instituições romanas) refutou a tese de Syme. Para Gruen, a República romana estava de boa saúde e o seu fim não era inevitável nem previsível. O que liga os argumentos de Syme e de Gruen, ao ponto de lhes pôr termo ao confronto, é acção dos agentes políticos. As suas escolhas e se tiveram ou não em conta as consequências do que fizeram.

Transpondo para a actualidade, apesar das crises poucos acreditam que as democracias ocidentais estejam em risco. Mas há sinais que se reflectem de diversas formas, conforme o país ou a região: nos EUA com o populismo, na França com os discursos extremistas, na Hungria e na Polónia através das violações directas ao Estado de direito, no Reino Unido traduzida no Brexit. O que se passa na Península Ibérica enquadra-se nesta tendência e está a ter implicações no funcionamento do sistema. Talvez não haja lições que Portugal possa tirar de Espanha, mas parece-me que são várias as ilações que os países ibéricos podem retirar da história clássica.

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