O anúncio chegou assim há uns dias: “Interrupção voluntária de gravidez até às 12 ou 14 semanas: PS regressa à agenda fraturante. Alexandra Leitão, líder parlamentar do PS, quer o alargamento do prazo da IVG e regulamentação dos direitos dos médicos à objeção de consciência.

Depois começou a Academia Socialista e o líder cessante da JS, Miguel Costa Matos, explicou que “as mulheres “demoram tempo” a descobrir que estão grávidas e precisam depois de um período para refletir se querem fazer a IVG.” Alexandra Leitão também falou e, no meio de avisos a Montenegro (e também a Pedro Nuno Santos!) sobre a aprovação do Orçamento (“Um OE de direita só pode ser aprovado pelas forças políticas de direita na AR. Não contem com o PS para isso“) e de manifestar a sua disponibilidade para ser candidata autárquica em Lisboa, afirmou que vai lançar o “debate sobre a despenalização do aborto realizado por opção da mulher para além das 10 semanas, como eu, pessoalmente, defendo há muito“.

Deixando para mais tarde a interpretação da irrequietude que a líder parlamentar socialista começa a evidenciar – em Junho, Alexandra Leitão declarava “Sou uma das mulheres do PS com condições” para ser primeira-ministra” e ainda Agosto não tinha acabado e já declarava o seu interesse pelo trabalho que se faz nas autarquias quando interrogada sobre uma possível candidatura a Lisboa… (para Pedro Nuno Santos apoiar uma qualquer candidatura de Alexandra Leitão pode ser a única forma de evitar que muito brevemente Alexandra Leitão seja candidata a substituí-lo) – vamos à questão do alargamento do prazo para a realização do aborto. E comecemos pelas palavras. Causa fracturante chamou-lhe o Expresso. Porquê fracturante e porque não populista?

Se olharmos para os factos – número de abortos e perfil de quem aborta, ou para a proposta de alargamento em si, que ora vai até às 12 semanas ora até às 14 – constata-se que no PS, tal como no Chega, se atirou para a frente tacticamente com um assunto e depois se verá. Quem sabe o CDS e o PSD se desentendem por causa do aborto e a AD leva um abanão?! A esta forma de proceder quando os personagens não estão mediaticamente beatificados chama-se populismo. E é isso mesmo de que se trata: populismo.

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Em 2024, o aborto está para o PS (ou parte dele) como a imigração para o Chega: não interessam os factos porque o que se pretende não é resolver problema algum mas sim fracturar a sociedade. E, não menos importante, fracturar o entendimento entre PSD e CDS. Nada disto é novo mas convém que chamemos as coisas pelos seus nomes. E a coisas iguais dão-se nomes iguais.

Mas falemos sobre o aborto. Em Portugal, “a interrupção da gravidez por opção da mulher pode ser realizada nas primeiras 10 semanas (10 semanas + 6 dias) de gravidez, calculadas a partir da data da última menstruação e confirmadas por ecografia.” Na verdade, a esmagadora maioria das mulheres que optam por interromper a gravidez não chega às dez semanas. Ao contrário do que com muito paternalismo afirma o deputado Miguel Costa Matos, a esmagadora maioria das mulheres sabe cedo que está grávida e decide rapidamente se quer ou não prosseguir com aquela gravidez. Segundo dados da DGS a maior parte dos abortos são efectuados até às 7 semanas de idade gestacional. Ou seja bem antes das 10 semanas em que a gravidez pode ser interrompida a pedido da mulher. (Depois desse período, a interrupção voluntária da gravidez é permitida até às 12 semanas para evitar a morte ou danos físicos ou psicológicos graves e duradouros da grávida; até às 16 semanas se a gravidez resultar de violação ou abuso sexual da mulher; até às 24 semanas em caso de o bebé vir a sofrer de doença grave ou malformação congénita. A interrupção voluntária da gravidez é ainda permitida, a qualquer momento, caso seja essencial para prevenir a morte ou danos físicos ou psicológicos graves e irreversíveis para a grávida ou caso se conclua que o feto não irá sobreviver.)

Não existe portanto em Portugal qualquer problema com os prazos legalmente definidos. Existem sim os problemas decorrentes da degradação do SNS, muito particularmente durante os governos PS a que Alexandra Leitão foi indiferente: em 2022, estava o PS no Governo, 3069 mulheres que pretendiam fazer uma IVG  não foram atendidas no SNS nos cinco dias que a lei estipula como prazo máximo para o primeiro atendimento nestes casos. 767 dessas mulheres aguardaram entre 11 e 15 dias por essa primeira consulta. Não fosse o prazo das dez semanas e teriam esperado ainda mais. Afinal, ao aumentar-se o prazo legal para se efectuarem as IVG a pedido da mulher, o que se está a fazer é simplesmente dizer aos serviços que se podem atrasar um pouco mais e transferir para as mulheres o ónus do mau funcionamento dos serviços. O aborto não é um método anticoncepcional, nem um tratamento. É um procedimento que deve ser absolutamente excepcional e que tem impacto na saúde física e psicológica das mulheres, logo deve ser efectuado tão cedo quanto possível. Portanto, se o PS quer mesmo discutir o aborto deve começar por ler os relatórios da DGS.

Por fim. Quando comparado com outros países europeus, Portugal apresenta uma média baixa de interrupções de gravidez. Mas o número de abortos praticados está a aumentar tanto em Portugal como noutros países: em 2022, o número de abortos realizados em Portugal subiu 15 por cento face a 2021. Mas o crescimento do número de abortos em Portugal coloca outras questões: percentualmente as mulheres de nacionalidade estrangeira praticam duas vezes mais abortos que as portuguesas. Porquê? O não terem acesso a consultas de planeamento familiar é uma possível resposta. E porque não falam deste assunto os actuais promotores do aborto como “causa fracturante”?

Por último. Alexandra Leitão anunciou também que o PS vai regulamentar a objecção de consciência à interrupção voluntária da gravidez. Traduza-se:  Alexandra Leitão anunciou também que o PS vai dificultar o acesso das mulheres ao aborto porque vai incentivar a fuga de médicos e enfermeiros do SNS para os privados. Em 2016, Alexandra Leitão encetou uma perseguição jacobina aos chamados colégios com contratos de associação. Fecharam escolas que conseguiam bons resultados, escolas de que os alunos gostavam e cujo trabalho era reconhecido, tudo porque Alexandra Leitão, então secretária de Estado Adjunta e da Educação, não suportava o modelo de funcionamento destas escolas e muito menos o seu sucesso. Em 2024, a mesma Alexandra Leitão vê problemas onde eles não existem – os prazos para interrupção da gravidez – e arrisca promover a fuga dos profissionais para o privado. Há dois tipos de políticos: os que decidem com base nos problemas e aqueles que criam problemas. Alexandra Leitão integra este último grupo.