As mulheres voltaram a existir. E por mais que tal me custe a admitir devem-no ao aborto. Sim, durante anos andámos às voltas com questões como: só as mulheres engravidam? Deve dizer-se mulheres ou pessoas que menstruam? Deve dizer-se mãe ou pessoa com útero?

Denunciar a loucura subjacente a esta agenda valeu a muita gente o fim de carreiras académicas nos EUA, o posto de trabalho em instituições e serviços de saúde no Reino Unido ou serem regularmente insultados por esse mundo que já foi mais livre.

Estávamos pois no meio do mais inquestionável unanimismo em torno das questões ditas de género que em nome duma alegada inclusão reduzem as mulheres a pessoas que amamentam, pessoas que engravidam e, nos casos das mulheres mais pobres, a sua redução nem à qualidade de “pessoa que” mas sim à de parte de “pessoa que”, pois são tão só barrigas que se alugam, e eis que de repente o direito das mulheres ao aborto está por toda a parte. Estranhamente ninguém se lembrou de escrever, dizer ou sugerir que “o direito ao aborto das pesso@s com sexo feminino atribuído à nascença foi consagrado constitucionalmente em França”. Ou colocado em causa por uma proposta de referendo.

Sim, só as mulheres abortam. Tal como só as mulheres engravidam e só as mulheres são mães. Que tenha de sido o aborto a provar essa evidência comporta em si uma dolorosa ironia.

A constitucionalização do direito ao aborto interessa a quem? Depois de ter querido mandar tropas da NATO para a Ucrânia, Macron resolveu virar-se para uma batalha interna não só mais fácil de travar como de efeito mais garantido. Falo da constitucionalização do direito ao aborto.

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A operação teve a teatralização inerente às grandes cerimónias como só os franceses sabem fazer: numa place Vendôme cheia de nomes sonantes, o ministro da Justiça francês imprimia o novo direito num exemplar histórico da Constituição usando uma prensa também ela histórica. Tudo histórico verdadeiramente falando, se por histórico se entender a criação de um acontecimento mediático com vista à reescrita da História.

Estamos claramente perante uma estratégia de governação em que, perante a incapacidade de assegurar direitos essenciais, cumprir promessas eleitorais ou realizar objectivos dados como garantidos, a táctica de quem governa para iludir o seu falhanço passa pela criação de momentos-acontecimentos invariavelmente apresentados como um avanço pioneiro à escala planetária.

Porque, ao contrário do que possa supor quem leu os títulos destes dias, há largo tempo que a França consagrou o direito ao aborto: a 17 de Janeiro de 1975, foi aprovada a chamada lei Veil (a ministra responsável pela lei era Simone Veil) que despenalizava o aborto. Sucessivas alterações legislativas, a últimas das quais em 2022, trataram de efectivar esse direito.

A constitucionalização do direito ao aborto insere-se assim na tendência presente da transformação das constituições em programas de governo e, não menos importante, é mais um passo para acabar com o direito à objecção de consciência por parte dos médicos e também do pessoal de enfermagem nos países em que, como acontece em França, o aborto pode ser praticado por esses técnicos. É preciso ter em conta que, ao transformar-se o direito ao aborto num direito humano, se faz equivaler a objecção de consciência a uma recusa de prestação de cuidados médicos, com tudo o que isso implica.

Não é preciso ser especialista na matéria para perceber que o fim do direito à objecção de consciência, além dos problemas éticos que levanta, acabará a pôr em causa não apenas o direito ao aborto mas também a saúde das mulheres, porque produzirá a fuga dos médicos e técnicos de saúde para serviços onde não sejam forçados a praticar interrupções de gravidez. Mas será que isso interessa mesmo a quem, do parlamento Europeu às agências das Nações Unidas, está  fazer o caminho para acabar com o direito à objecção de consciência por parte dos médicos?

Alguém já perguntou porque está aumentar o numero de abortos? Não só o direito ao aborto não está em causa para as mulheres francesas como se detecta nos últimos anos uma preocupante tendência para o seu crescimento: em França, no ano de 2022, realizaram-se 234.300 IVG ou seja mais 17 mil abortos que em 2021 e mais 7 mil que em 2019. Mais relevante ainda: sendo o aborto uma prática mais comum entre as mulheres mais jovens — 20 a 24 anos — está também a aumentar nas mulheres mais velhas.

Portugal acompanha esta tendência de crescimento — em 2022, o número de abortos realizados subiu 15 por cento face a 2021 — embora mantenha uma média baixa de interrupções de gravidez quando comparado com outros países europeus. Mas se virmos melhor os números percebemos que o crescimento do número de abortos não cresce de igual modo para todas as mulheres em Portugal: percentualmente as mulheres de nacionalidade estrangeira praticam duas vezes mais abortos que as portuguesas. Quer isto dizer que não têm acesso a consultas no SNS?

Algo tem de estar a falhar para que o número de abortos esteja a crescer em sociedades onde existe acesso a informação, liberdade de contracepção e acesso gratuito a cuidados de saúde.

O aborto é uma opção excepcional que, defendo, deve poder ser tomada em liberdade e segurança. Por isso mesmo não é nem pode ser um método anticoncepcional.

Deve referendar-se o direito ao aborto de novo em Portugal? Durante a campanha eleitoral soube-se que há quem defenda que se realize um novo referendo ao aborto. Seria o terceiro referendo sobre este assunto. Quem assim pensa está no seu direito. O que não implica que tenha de se lhe reconhecer razão. O que já não se pode aceitar é o uso do instrumento do referendo como um instrumento que acaba a vencer os eleitores por exaustão. E isto no caso português tanto é válido para o referendo ao aborto como para o referendo à regionalização.