Em Portugal, entre o início do século XXI e a crise da dívida, a clivagem entre os trabalhadores do setor público e do setor privado estava muito presente. Esta clivagem foi marcada por posições ideológicas e diferentes visões sobre o modelo de desenvolvimento do país, mas tinha na sua base uma crise nas finanças públicas. Em 2001, Portugal tinha sido o primeiro país da Área do Euro a violar o Pacto de Estabilidade e Crescimento. Em 2002, teve início um programa de austeridade orçamental que, com variações, se mantém ainda hoje. Nessa altura, a despesa com os funcionários públicos era a principal despesa do Estado português, correspondendo a mais de 30% da despesa, tendo atingido um máximo de 14,5% do PIB em 2005. A sustentabilidade das contas públicas e o cumprimento das regras europeias obrigou a medidas para controlar o crescimento da despesa pública. A despesa com os funcionários públicos foi um dos alvos prioritários. Com a exceção do aumento salarial eleitoralista de 2009, desde 2002 a progressão salarial da função pública esteve sujeita a congelamentos salariais e de carreiras, cortes salariais nominais e reais. Em 2014, o peso das remunerações no PIB tinha caído para 12%, voltando assim aos níveis do início da década de 90. Para além do controlo dos salários, também o número de funcionários públicos diminuiu de forma significativa, de cerca de 730 mil em 2011 para 650 mil em 2014.

Em 2016, para além da eliminação dos cortes salariais de José Sócrates, registou-se a reposição das 35 horas semanais para a função pública, mantendo-se as 40 horas para o setor privado. Esta medida de favorecimento da função pública reavivou mais uma vez a clivagem entre função pública e setor privado.

Nos anos seguintes, para compensar a redução da carga horária para as 35 horas, pela incapacidade de fazer reformas e melhorar a eficiência dos serviços ou por necessidades efetivas em algumas áreas, o número de funcionários públicos cresceu e voltou a ultrapassar os 730 mil em 2021, representando 14,2% da população ativa. No entanto, em percentagem do PIB a despesa com os funcionários públicos era cerca de 10,8% em 2022 (ainda inferior à de 2014).

A rutura ou o mau funcionamento de muitos serviços públicos e as greves dos professores têm colocado na agenda mediática as condições de trabalho dos funcionários públicos. Na semana passada, uma publicação do Instituto Nacional de Estatística, que compara as condições salariais da função pública com as do sector privado, trouxe mais uma vez para a agenda mediática a clivagem entre os trabalhadores do setor público e do setor privado. De acordo com essa publicação, em 2021, a remuneração bruta mensal média dos trabalhadores da função pública era 51% mais elevada do que a do sector privado (2 019€ vs. 1 335€). Um estudo do Banco de Portugal de 2005, da autoria de Maria Manuel Campos e Manuel Coutinho Pereira, concluía que aquela diferença era de 56%.

O INE salienta que está a comparar grupos de trabalhadores com níveis de escolaridade muito diferentes: 55% dos trabalhadores da Administração Pública tinham o ensino superior, enquanto 45% dos trabalhadores do sector privado tinham no máximo o 9º ano de escolaridade. Os dados que o INE libertou também mostram que a estrutura etária das duas populações de trabalhadores é muito diferente: 66% dos trabalhadores da função pública tinham mais de 45 anos, enquanto no sector privado essa percentagem era de apenas 40%. Apesar de o INE sugerir que a comparação que está a fazer é muito imperfeita, decidiu ainda assim destacar aquele valor de 51%. O estudo do Banco de Portugal de 2005, concluía que quando se tinham em conta os efeitos das qualificações e da antiguidade, entre outros, os funcionários públicos ganhavam em média 17% mais do que os restantes, no entanto, para os níveis de remuneração mais elevados, o sector privado pagava mais 20 a 30% do que o público. Um estudo de 2013, encomendado pelo Ministério das Finanças, chegava a conclusões semelhantes. O INE deveria ter feito uma análise similar antes de libertar um número que diz muito pouco sobre a comparação entre as remunerações no setor público e no setor privado.

O INE, que tem dado um importante contributo para o conhecimento da sociedade e da economia portuguesas, nomeadamente através da disponibilização de informação a investigadores, neste caso prestou um mau serviço. Numa altura em que tantos serviços estão à beira da rutura por falta de profissionais, na saúde, na educação ou em áreas tecnológicas, e em que é necessário rever as carreiras, é muito importante conhecer as condições remuneratórias no setor público e privado. A informação que o INE libertou não serve esse propósito, mas serve para reavivar a clivagem entre a função pública e o setor privado.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR