Não tenho o hábito de repisar temas sobre os quais já me pronunciei no espaço público. Infelizmente, a sombra que se projeta sobre Portugal, a propósito do que o Governo pretende fazer sobre os próximos meses de confinamento, e a apatia geral com que estas anunciadas medidas estão a ser recebidas na sociedade e nos partidos políticos que a devem representar, obriga a nova advertência.

Vejamos os factos.

Desde o início da pandemia, os portugueses têm visto os seus direitos, liberdades e garantias constitucionais severamente limitados por sucessivas declarações de estado de emergência, apesar de tudo, feitas nos termos da Constituição. Embora seja legítimo duvidar da proporcionalidade de várias das medidas que, ao longo dos últimos meses, têm sido tomadas, face aos danos que se pretendem evitar e, por consequência, da sua constitucionalidade, as coisas foram seguindo o que está determinado na Constituição, como deve ser num Estado de direito.

Há cerca de uma semana, o governo fez saber (plantou?) no Expresso que a etapa seguinte de desconfinamento deveria prescindir das formalidades constitucionais do estado de emergência e ser entregue à discricionariedade do primeiro-ministro e do governo que chefia.

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Mais tarde, na página online do mesmo semanário, de novo se regressa ao tema, dizendo que o governo pretende aprovar uma «lei especial» que o autorize a prescindir de normas constitucionais imperativas, para poder «intervir mais rapidamente nas restrições sanitárias em caso de descontrolo localizado da pandemia, sem precisar do decreto do Estado de Emergência».

Isto significa que, nos próximos meses e sem termo certo, que dependerá presuntivamente da evolução da pandemia, António Costa disporá de alguns dos nossos direitos fundamentais mais importantes conforme bem entender. Ficará, assim, ao seu inteiro critério, a nossa liberdade de circulação, de exercício profissional e de atividades comerciais, de ensinar e de aprender, de reunião, de exercício da cidadania e de gozo da vida privada. Como serão decisões suas as sanções e penas aplicáveis a quem incumprir as suas determinações.

Tudo isto será feito sem consideração pela Constituição e pelo que determina o seu artigo 19º, que exige a declaração de estado de emergência ou de sítio para que se possam temporariamente afetar os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos portugueses. Sem que, de quinze em quinze dias, a Assembleia da República aprove essa situação de exceção e sem a intervenção do Presidente da República. António Costa colocar-se-á, assim, acima da Constituição e governará em verdadeira ditadura do governo e do primeiro-ministro.

Nestas circunstâncias, tão gravemente lesivas da Constituição e do Estado de direito democrático, o que têm a dizer os partidos políticos, que invariavelmente enchem a boca com a defesa da nossa Lei Fundamental, aqui tão flagrantemente posta em causa? O que têm  dizer, por exemplo, João Ferreira, candidato presidencial do Partido Comunista, que fez toda a sua campanha a afirmar-se como paladino da Constituição? Ou Ana Gomes, também candidata na mesma eleição, que, a par e passo, agitou o fantasma de André Ventura como ameaça do nosso Estado de direito democrático? Ou o Bloco de Esquerda, o Partido Comunista e o próprio Partido Socialista, que passaram os anos do governo Passos Coelho a revirarem os olhos por causa de supostos atentados à Lei Fundamental? O assunto será também indiferente para os 79 deputados do Partido Social Democrata? Rui Rio aceitará, mais uma vez, esta situação manifestamente inconstitucional e inimiga da democracia, em nome da estabilidade e da «seriedade» da sua oposição? Nenhum grupo parlamentar, ou conjunto de deputados, do Chega, da IL, do CDS, do PSD, suscitarão a fiscalização prévia de uma lei que colocará na gaveta a Constituição da República? E o Presidente da República, que a jurou defender, irá promulgar essa «lei especial» sem a prévia audição do Tribunal Constitucional?

Estamos, pois, num momento de extrema gravidade para a nossa democracia. Se isto passar sem oposição democrática, a Constituição portuguesa será, doravante, letra morta. No futuro, que poderá não ser tão longínquo quanto isso, quaisquer boas razões invocadas pelo poder executivo poderão justificar outros atropelos à lei e ao Estado de direito. Este vai ser, por conseguinte, um momento determinante para a nossa vida democrática, onde não será possível ficar em cima do muro: ou se aceita a arbitrariedade e a indiferença constitucionais de António Costa, ou se procurará obrigá-lo a cumprir a Lei Constitucional, que ele, de resto, tem a obrigação de acatar e até de fazer respeitar e cumprir.

A notícia do Expresso diz-nos, ainda, que o governo irá «medir o pulso aos partidos sobre esta eventual alteração legislativa especial para o desconfinamento». É bom que os partidos lhe expliquem o que a Constituição é e que não nos envergonhem a todos os que neles temos vindo a confiar a nossa representação democrática.