A imagem tornou-se viral. De facto, não fazia parte do real ou do imaginário português ver Marcelo Rebelo de Sousa a evitar os jornalistas. Mais a mais no momento em que o Orçamento, por cuja aprovação tanto pugnara, acabava de ser recusado pela Assembleia da República.

Era essa a razão que tinha encaminhado para o palácio de Belém os profissionais da comunicação social. Davam por adquirido que o Presidente teria algo a dizer aos portugueses. A regra da vida habitual. Mesmo quando a pertinência não é de monta. Ao contrário do momento em questão.

Contudo, ao arrepio daquela que tem constituído a sua forma de estar na presidência, Marcelo resolveu ignorar a presença das câmaras. Ele, que construiu grande parte da sua imagem pública através de uma quase omnipresença nos ecrãs, decidiu que era chegado o momento de se remeter à condição de simples cidadão. Alguém que tem direito à privacidade quando decide ir pagar as contas no multibanco.

Uma atitude que tem muito de estranho e que é passível de interpretações que em nada valorizam a imagem cultivada pelo Presidente dos afetos. Um comportamento que requer uma leitura política.

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Assim, os sucessivos apelos presidenciais, mesclados de uma intervenção a raiar os limites das suas competências, e a maratona negocial que envolveu os parceiros da extinta geringonça não foram suficientes para a aprovação do Orçamento. Uma decisão que um número não despiciente de vozes com direito ao megafone mediático considerou como uma catástrofe do tipo que o povo designa como «cair o Carmo e a Trindade».

Porém, ao contrário daquilo que essas vozes têm pretendido fazer ver, tanto a não aprovação do Orçamento como a anunciada e publicitada decisão presidencial da dissolução da Assembleia da República não significam que a democracia esteja em perigo em Portugal. Constituem, isso sim, uma demonstração de que as instituições estão a funcionar dentro da legalidade, ou seja, respaldados pela Constituição.

De facto, em parte alguma da Lei Suprema está estipulado que o Governo tenha direito à aprovação do Orçamento, mesmo que conte com a benevolência paternalista presidencial e que o documento tenha sido negociado – o que não foi o caso – com todas as forças com representação parlamentar. Da mesma forma, nada obriga o Presidente a solicitar ao Governo uma nova proposta de Orçamento na sequência da recusa parlamentar da versão inicial. A Constituição autoriza-o, isso sim, a “dissolver a Assembleia da República, observado o disposto no artigo 172.º, ouvidos os partidos nela representados e o Conselho de Estado” – art.133º, alínea e).

Face ao exposto, nada fazia prever a mencionada atitude de Marcelo Rebelo de Sousa. Só que a análise dos mais recentes atos presidenciais já tinha deixado no ar que, ao jogar simultaneamente em todos os tabuleiros, Marcelo nem sempre logra distinguir a magistratura de influência da magistratura de interferência. No xadrez da política, a reconhecida perícia marcelista perde poder de reflexão à medida que cresce o número de tabuleiros e a preparação dos outros jogadores.

Daí que a opinião pública não tardasse a ter conhecimento de que, ao mesmo tempo que se colocava em campo para tentar a aprovação do Orçamento, Marcelo recebia Paulo Rangel, o candidato que se apresta para disputar a liderança do principal partido da oposição. Uma receção que mereceu o repúdio de Rui Rio e que o levaria, quase de seguida, a questionar se o Presidente não estaria a querer dar uma ajuda a Rangel protelando as eleições para uma data muito para além daquela que Rio considera passível de satisfazer o interesse nacional.

O povo proverbia que quem quer ser respeitado tem de se dar ao respeito. Uma forma de dizer que a imagem presidencial está a enfrentar dificuldades para saldar as contas. Aquelas que não se pagam no multibanco.