O desafio que o ex-Presidente e ex-primeiro-ministro Aníbal Cavaco Silva deixou a António Costa, no artigo invulgarmente irónico, que escreveu no Observador, devia ser levado muito a sério. O actual primeiro-ministro corre o sério risco de ficar na história pela Geringonça, que afinal não partiu muro nenhum, e por ter sido o mais contabilista de todos os governantes, reduzindo o défice público sem medidas para se fazer o mesmo com menos, o que acabou na degradação dos serviços. Os primeiros indicadores começam agora a surgir.

A atitude tribal, de interpretar as palavras de Cavaco Silva como de alguém com “azedume e ressentimento em relação ao país”, como o fez a ministra Ana Catarina Mendes, é um erro. Já foi tudo o que quis ser e até hoje ninguém o conseguiu ultrapassar – António Costa poderá chegar aos dez anos de governação, mas só em quatro tem maioria absoluta. A elite urbana, especialmente lisboeta, numa atitude difícil de explicar, não gosta dele, mas seguramente que muitos votaram nele. E o ex- Presidente da República pode ter apenas saudades da política ou vontade de ajudar a salvar o PSD, mas tem seguramente também uma preocupação grande com o futuro do país. Nem que seja, como disse na entrevista a Maria João Avillez, porque tem filhos e netos.

Não é verdade que não tenha uma visão sobre o que é preciso fazer – tem-no dito várias vezes considerando até que precisamos de um “choque reformista”. Nem é especialmente original – são várias as vozes que vão no mesmo sentido: precisamos de modernizar o sistema fiscal simplificando-o e tornando-o mais equitativo e competitivo, é preciso ter uma administração pública moderna com menos burocracia, é preciso mais certeza jurídica. Só para citar algumas das medidas que tem referido, tendo sempre como referência a necessidade de atrair investimento estrangeiro.

Quando olhamos para os últimos seis anos, se não formos dos partidos como quem pertence doentiamente a um clube de futebol, temos de ficar preocupados. Como várias vezes se escreveu neste espaço, o caminho que se escolheu para reduzir o défice público degradou o Estado em funções fundamentais, como as de soberania e as sociais, por falta de investimento e até de gastos correntes. As próprias empresas do Estado foram condicionadas, com os gestores transformados em directores-gerais.

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Olhamos para a polícia e percebemos as condições péssimas em que trabalham. A isso o Governo responde com os nossos elevados índices de segurança e baixos indicadores de criminalidade. Sem dúvida que tem razão, mas é isto fruto do que fez ou do que outros fizeram no passado?

Na Justiça foram seis anos completamente desperdiçados com uma ministra, agora ex, que se limitou a não se mexer. Sem que isso incomodasse o primeiro-ministro. Pior do que isso, partidarizou ainda mais a justiça e, de repente, deixaram de existir grandes investigações.

Na Saúde, o Governo desculpa-se com a pandemia e enche o peito como grande defensor do Serviço Nacional de Saúde, quando aquilo que vemos na realidade é assustador. De tal maneira que já se começam a ver os primeiros indicadores desta degradação da saúde. Pobres dos que precisam, em urgência, dos serviços públicos de saúde e que são em geral os mais idosos e os mais pobres. Além de funcionar mal, o SNS tornou-se desumano, pelo sobre-humano que a falta de investimento e organização exigiu a quem lá trabalha. António Costa e os seus ministros correm o sério risco de ficarem na história como os destruidores do SNS, se não começarem a mudar a sua atitude, se não passarem a ter mais coragem. Sempre, todos mais preocupados com quem presta os cuidados de saúde, se o público ou o privado, e esquecendo que precisamos é de cuidados de saúde.

Na Educação continuamos a assistir ao aprofundar do fosso entre as escolas dos bem sucedidos e as escolas dos mal sucedidos, sem qualquer preocupação de misturar classes sociais. Estamos a fazer nas escolas o mesmo que se fez com os bairros socais – criam-se guetos que tornam impossível o funcionamento do elevador social. Sempre, e tal como na Saúde, mais preocupados em controlar quem é o dono da escola do que com a qualidade da educação.

Nas políticas sociais, em vez de aproveitar a calma do crescimento para as avaliar, simplificar e tornar mais eficazes, fomos acumulando anúncios de apoios para aqui e para ali, como se o Governo quisesse que todos os portugueses tivessem um subsídio. É assustadora a atitude que começamos a descobrir, nascida e crescida nestes seis anos, de pedinchice, de “o Estado é que nos devia dar” ou, na versão mais vulgar, “eles deviam pagar” ou “eles dizem que vão dar”. Uma atitude que a pandemia agravou – aqui justificada – e que lança o país para a perigosa posição de pedinte estrutural – o governo pede a Bruxelas, nós pedimos ao Governo.  E assim matando a iniciativa, a energia de ser melhor.

Mário Soares teve a coragem de combater os que queriam fazer de nós a Cuba da Europa e lançou as raízes para sermos uma democracia moderna e virada para a Europa. Aníbal Cavaco Silva agarrou nesses trabalho político, já feito por Mário Soares, e modernizou  e liberalizou o país. De 1974 a 1995 o país mudou de forma extraordinária. Temos depois períodos menos bem-sucedidos. António Guterres teve o desafio do euro, mas não se pode dizer que nos tenha preparado estruturalmente para ele. Durão Barroso pouco governou, tal como Santana Lopes. A nova onda de mudança estrutural chegará com José Sócrates a quem devemos o início das renováveis, que hoje se revela tão importante, ou a liberalização do sector das farmácias. Exagerou? Sem dúvida. Mas se não se tivesse metido nas embrulhadas em que está, Sócrates poderia estar na galeria dos bons primeiro-ministro, fundamentalmente por causa do seu primeiro governo.

Finalmente Pedro Passos Coelho, a quem coube o fardo de corrigir tudo o que não se fez ou fez erradamente a partir de 1995. Foram mais de dez anos de uma política de acumulação de dívida, pública e privada, numa primeira fase até considerando-se que não existia problema nenhum, porque nos estávamos a endividar em euros.  Recorde-se mais uma vez que, também nessa altura, Aníbal Cavaco Silva se opôs a essa ideia, nomeadamente numa conferência no ISEG, de homenagem a José da Silva Lopes, em que do outro lado estava Vítor Constâncio.

Pedro Passos Coelho tem sido o mais injustiçado dos nossos primeiro-ministros. Teve uma coragem invulgar, sem o calculismo a que assistimos com frequência, quando os governantes evitam as medidas que afectam alguns grupos para ter futuro na política ou nos empregos. Será isso que explica a incapacidade do PSD de valorizar Pedro Passsos Coelho? De ter nele uma referência de coragem? Aníbal Cavaco Silva tem sido dos poucos a sublinhar as qualidades do ex-primeiro-ministro.

Tudo aquilo que António Costa conseguiu fazer a partir de 2015 deve-o a Pedro Passos Coelho, ao país financeiramente equilibrado que deixou. Ah, sim, os bancos, deixaram o problema de alguns bancos por resolver, dirão. Sim, sem dúvida que um dos erros foi não terem obrigado os bancos todos, incluindo o BES, a capitalizarem-se. Mas dificilmente isso teria salvo os bancos, BES e Banif, cujos buracos foram feitos antes 2011 .

Quando António Costa chega ao poder, a emergência estava resolvida, os fogos estavam apagados, e era a altura de começar a construir os alicerces de um país mais sólido, com um Estado mais simples e capaz de servir os cidadãos. Mas António Costa não pôde escolher esse caminho de modernização, a aliança a esquerda não lhe deu essa liberdade. E assim concentrou-se num único objectivo: reduzir o défice público e com ele a dívida para que se evitasse estar sob resgate.

A aliança com a esquerda reduziu praticamente a duas as ferramentas para reduzir o défice: congelar despesa de investimento ou outra através das cativações e vetos de gaveta e aumentar receitas fiscais e de contribuições com pequenas alterações. E assim chegamos aos dias de hoje. Como várias vezes dissemos neste espaço, o caminho escolhido para reduzir o défice – corte de despesa sem qualquer reforma do Estado que permitisse fazer o mesmo com menos – iria degradar os serviços públicos.

E é essa a realidade com que estamos hoje confrontados, um Estado que está mais degradado do que em 2015 nos serviços que presta aos cidadãos. Um sistema fiscal que não consegue baixar impostos. Uma segurança social que criou um quadro de apoios sem racionalidade e que nas pensões está longe de garantir a sua sustentabilidade. Uma Justiça que não funciona e é factor de atraso do país, nomeadamente na área administrativa e fiscal. Uma educação e uma saúde dual, com um fosso cada vez maior entre ricos e pobres.

António Costa vai precisar de muita coragem para em quatro anos fazer o que não fez em seis e até corrigir alguma das coisas que fez, entre elas ter gerado a atitude de pedinte em mais portugueses. Hoje há dinheiro, só é preciso coragem. O desafio de Aníbal Cavaco Silva, esperemos, pode ter irritado o primeiro-ministro e assim tê-lo feito ganhar coragem para fazer as mudanças menos simpáticas que o país precisa.