A hora dos portugueses foi a hora de um pequeno povo que conseguiu demonstrar toda a sua tenacidade ao colocar a seus pés o mundo conhecido de então. Mas a hora que se seguiu, foi a hora que Stephen Zweig designou brilhantemente no seu livro sobre Fernão Magalhães, como a hora da “embriaguez da vitória”, a hora do deslumbramento, dos excessos e da prepotência que nos fez perder o império.
Hoje a hora dos portugueses é bem mais pequenina, é a hora do défice zero com que ficámos maravilhados, apesar de esta que surge após um dos períodos mais conturbados da nossa história democrática, onde se descredibilizaram as instituições públicas e privadas, sejam escolas, parlamento, meios de comunicação, câmaras municipais, tribunais, bancos, fundações, hospitais etc.
Mas enquanto na era dos descobrimentos construiu-se um império do nada, agora deambulamos pelos escombros de instituições ruinosas e outras por ruir, a varrer o pó para baixo de um tapete, que se torna de dia para dia, cada vez mais pequeno… E claro, deslumbrados com a vitória de um défice zero, cujo mérito reside na maior carga fiscal que há memória e numa conjuntura internacional arrepiante de taxas de juro negativas.
Na realidade, apesar do défice zero, tão pouco aproveitámos esta conjuntura favorável para resolver os desequilíbrios estruturais do país, e agora, estamos a deixar-nos cair nos mesmos excessos e na mesma prepotência da hora seguinte, a hora da “embriaguez da vitória”. Mas o que faz mais confusão, é a falta de empenho para se analisar os factos e desmontar o pretenso virtuosismo desta política económica, que à parte de um outro mérito fugaz, tem poucas razões para ser alvo de grandes festejos.
Nos últimos três anos o PIB nominal passou de 179,809 mil milhões de euros em 2015 para o valor 201,530 mil milhões de euros em 2018 (fonte: INE), crescendo cerca de 21 mil milhões de euros, ou seja, o mesmo valor que cresceu a dívida pública ajustada das coberturas cambiais no mesmo período, que passou de 223,939 mil milhões de euros no final de 2015 para 244,987 mil milhões de euros em 2018 (fonte: IGCP).
Apesar do crescimento em valor do PIB nominal se resumir à subida do stock da dívida, o governo e os organismos públicos, como o IGCP, tiveram o mérito de acomodar esta subida da dívida, aproveitando também um cenário internacional extremamente propício para o efeito. Ao ponto que a subida de 9,4% da dívida pública, os tais 21 mil milhões de euros acima descritos, traduziram-se apenas num acréscimo de 50 milhões de euros de juros neste período, ou seja, numa subida de apenas 0,7% nos encargos e juros da dívida pública face a 2015 (fonte: Banco de Portugal). Mas tendo em conta o incremento de 21 mil milhões de euros de dívida e as condições únicas de financiamento da economia, não deixa de ser constrangedor como o investimento público inexplicavelmente caiu em média 12,28% nos últimos três anos. Em vez disso, a despesa corrente começou a subir alegremente respaldada pela maior carga fiscal de sempre, 35,4% (fonte: INE).
É neste contexto que é forçoso procurar encontrar bases sólidas de um pacto de regime. A razão é simples, se continuarmos embriagados com a lógica de uma política económica social de “panem et circenses”, com passes mais baratos mas sem transportes, ou de saúde para todos sem condições, ou de justiça sem meios, ou de educação sem avaliações responsáveis de alunos e professores, na próxima crise vamos acabar por ficar sem passes, sem transportes e sem dinheiro para a saúde, para justiça, e para a educação.
Seguramente quando falarmos da próxima recessão, vamos perceber rapidamente que as famosas “contas limpas” depressa se tornaram sujas. Não podemos por isso ignorar que numa próxima recessão já partimos com a carga fiscal e a dívida mais elevada de sempre e não podemos esconder o facto, como numa próxima crise, a colecta dos impostos colapsa (entre 2008 e 20O9 a receita de impostos diretos e indiretos caiu 14%, o equivalente hoje a cerca de 5 mil milhões de euros fonte: DGO), sabendo que para manter a despesa e conseguir pagar a dívida vai ser preciso subir ainda mais os impostos. E também é importante ter presente, como é efémero o valor deste défice nesta conjuntura de taxas de juro negativas, quando basta um pequeno aumento do custo estrutural da dívida de 0,5%, para que os juros e encargos financeiros aumentem 17,5%, ou seja, cerca de 1,258 mil milhões de euros (dívida pública ajustada de coberturas cambiais era de 251,608 mil milhões de euros em maio de 2019, fonte: IGCP).
Não nos podemos esquecer que dado nível elevado dos nossos impostos e da nossa dívida, se calhar numa próxima crise não vamos ter forma de arranjar dinheiro para pagar subsídios de desemprego para quem ficar desempregado. É bom não esquecer que este défice zero, para além de viver do facto de não termos pago praticamente mais juros adicionais nos últimos três anos, a recuperação do emprego e a consequente queda dos pedidos de subsídio de desemprego, retirou ao défice 1,504 mil milhões de euros desde 2013 (fonte: Banco de Portugal).
Os riscos são evidentes para uma economia tão aberta e tão exposta ao ciclo, em que um abrandamento económico mais pronunciado, torna completamente efémera a ilusão do défice zero. A razão é simples, a queda das receitas é totalmente elástica com a deterioração da atividade económica, mas a despesa corrente não só é rígida, como muitas das componentes sobem com a detioração do ciclo económico. É neste enquadramento que os dados falam por si e estão acessíveis para qualquer um que queira realmente perceber e analisar, na medida em que, a guerra da sustentabilidade das contas públicas do país é um desafio tremendo que está longe de ter terminado. Sendo que o mais preocupante, é que continuamos impunemente a desperdiçar munições e a disparar tiros para ar, como se estivéssemos convencidos que esta guerra já terminou…
Depois de tudo o que passaram os portugueses, é desconcertante que a classe política não enfrente com verdadeiro sentido de Estado as grandes fragilidades do país: quer ao nível do excessivo endividamento, da precariedade do emprego e do pronunciado envelhecimento da população. É tão constrangedor assistir no Estado da Nação, ao deslumbramento daqueles que se limitam a enriquecer a sua vaidade, como é embaraçoso a forma como outros se demitem do esforço de analisar e procurar com rigor a verdade. E quando queremos puxar pela auto-estima dos portugueses, também não chega estar presente e abraçá-los, é preciso não deixar que se iludam e impedi-los que se contagiem com a “embriaguez da vitória”.