O episódio da passagem de António Domingues pela CGD é mais do que um fait-divers, não apenas por dizer respeito ao sistema político-financeiro do regime, mas porque desvenda o modo de operar dos actuais poderes da república, entre a esperteza e o ziguezague.
Esta madrugada, Vítor Matos comentava assim o comunicado nocturno da presidência da república: “depois de ter ouvido a conferência de imprensa de Centeno realizada na tarde desta segunda-feira, o presidente deixa o ministro ainda mais fragilizado ao fazer questão de dizer ser o “estrito interesse nacional” que o aconselha a (defender a sua permanência no governo). Em nenhum ponto da comunicação, (o presidente) defende as explicações do ministro ou diz que foram esclarecedoras”. O presidente teria até adensado o mistério, ao sentenciar que “a interpretação autêntica das posições do presidente da república só ao próprio compete.” Vítor Matos perguntava: a quem se dirige o presidente? Ao PSD, ao governo? A todos? A ninguém? É demasiado equívoco para um regime que, sendo uma democracia, não deveria talvez ser tão confuso para os cidadãos.
Há umas semanas que a oligarquia nacional tem andado a desfrutar a estreia caótica de Donald Trump. Com um ar muito sério, diz-se até angustiada com a “democracia americana”. Não digo que essa inquietação não fique bem aos nossos oligarcas. Mas talvez também não lhes ficasse mal preocuparem-se com o que eles próprios estão a fazer em Portugal. Porque este nosso circo de compromissos que afinal são “erros de percepção mútua”, de apoios que no fundo são facadas, de afecto que verdadeiramente é desprezo, de institucionalismo que afinal é malabarismo com as formas – pode pedir meças a qualquer caos em qualquer parte do mundo. Nem todos os regimes precisam de um Trump para perderem o norte. O nosso certamente que não precisa.
Temos um país cada vez menos competitivo num mundo cada vez mais instável. A resposta das oligarquias portuguesas tem sido a habilidade e a impostura. O resultado foi o que se poderia esperar: à instabilidade financeira, os oligarcas acrescentaram a imprevisibilidade política. Tudo começou com uma maioria parlamentar que afinal não quer ser maioria, ou só o é às vezes. Temos agora uma relação entre o presidente da república e o governo onde as aparências de sintonia e de entusiasmo mal disfarçam a frieza dos cálculos e dos estratagemas.
A oligarquia portuguesa já não acredita no que quer que seja. Nunca acreditou nas reformas recomendadas pelo FMI ou pela OCDE. Mas também nunca acreditou, como percebemos agora, na via do consumo privado e do investimento público a que as oposições se agarraram no tempo da troika. Nem Hayek nem Keynes. A oligarquia portuguesa só acredita no BCE. Por isso, agarra-se agora às métricas de Bruxelas, não para medir a reforma do Estado, mas apenas para garantir o acesso aos cofres da Europa. É esse o único objectivo nacional neste momento: dê por onde dar, custe o que custar, manter as aparências estatísticas, de modo a salvaguardar o financiamento europeu, sem o qual as finanças públicas e privadas do país entrariam em colapso imediato.
Tudo o mais é irrelevante, como se esforçaram ontem por nos convencer o ministro das finanças, agarrado à percentagem do défice como a uma garantia de imunidade, e o presidente da república, que, com a arte da protecção que mata, dava como única razão para o ministro ficar a “estabilidade financeira”. A “estabilidade financeira” – uma curiosa expressão, perante a agitação dos juros da dívida pública — já exige que suportemos, calados, o destrambelhado funcionamento das instituições?