Folheando um livro há muito lido – o Heréticos, de G. K. Chesterton -, descobri uma frase anotada de que me tinha perfeitamente esquecido: “Um bom romance conta-nos a verdade sobre o seu herói; mas um mau romance conta-nos a verdade sobre o seu autor.” Não me interessam aqui as querelas dos estudos literários em torno da omnipotência do autor, que lhe permitiria dizer a verdade sobre os seus personagens. Interessa-me que o que Chesterton diz é indiscutivelmente verdadeiro, sobretudo quando fala dos maus romances. O desprazer de, por inadvertência, conhecer quem não desejamos de todo conhecer é uma infelicidade comum a quem gosta de ler. Salva-nos o podermos romper imediatamente o contacto, sem chatice pessoal alguma, mal começamos a receber notícias sobre o modo como Carlos – a personagem que, no romance, serve para o autor mostrar a beleza e a universalidade da sua alma – se apoquenta com as “micro-agressões” de que é vítima, a necessidade de “empoderar” os “sujeitos racializados” ou a sua visão metafísica da radiosa libertação da ameaça do “apocalipse climático”.

Lamentavelmente, essa feliz liberdade de que dispomos com a literatura não se estende a outros planos do nosso comércio com o mundo. É verdade que os jornais e as televisões são opcionais, mas, a menos que, como os poetas beat de boa memória, nos tornemos guardas-florestais em distantes montanhas e nos dediquemos à prática do budismo zen, jornais e televisões são dificilmente escapáveis, sobretudo se, como bons cidadãos, quisermos estar minimamente a par do que se passa neste nosso planeta. Ora, jornais e televisões – sobretudo as televisões – transformaram-se, pouco a pouco, em condensados de sentimentalismo, puro schmaltz que nos convida insistentemente a adoptar uma visão uniforme do bem e a partilhar na nossa intimidade o sofrimento de vítimas selectas com as quais nos devemos por inteiro identificar, sob pena de nos vermos excluídos do campo da humanidade. A mínima dúvida sobre a excelência das vítimas, a mínima reserva quanto à abissal profundidade do seu sofrimento, podem, de um só golpe, condenar-nos ao estatuto de vis serventuários das trevas, jurados inimigos dos nobres funcionários da humanidade, nossos tutores sentimentais.

Não quero ser mal interpretado. Sei muito bem que o nosso contacto com a realidade não dispensa nunca uma dimensão emocional, que é algo mais do que um simples filtro que poderíamos remover se a isso estivéssemos dispostos. Mais. Esse elemento emocional, ou passional, não é apenas inevitável no que toca às coisas morais e políticas, bem como às estéticas. Ele é igualmente não-eliminável (embora mais atenuável) no que respeita à nossa actividade cognitiva, inclusive na dimensão mais acabada desta, isto é, no conhecimento científico. O problema começa quando o elemento emocional se substitui, insensivelmente, ao próprio objecto ao qual nos deveria permitir o acesso. Ou, dito de outra maneira: quando toma para si o lugar da realidade com a qual nos deveria ajudar a contactar e se transforma na única realidade que nos interpela, como se a nossa vida se reduzisse à existência numa alcova sentimental.

Não andamos longe disso, e o grande motor dessa operação distópica é, presentemente, a esquerda americana. Não há praticamente nada que escape às regras estipuladas pela alcova sentimental, cujo princípio fundamental é a reivindicação do estatuto de vítima preferencial às mãos de uma ordem que, quaisquer que sejam as aparências em contrário, tem por essencial função a nossa opressão. A entrevista feita por Oprah Winfrey aos duques de Sussex, Meghan e Harry (a ordem, é claro, não é arbitrária – e cada vez menos o será), é o exemplo perfeito disto. Em poucas palavras, Charles Moore, como é costume, disse no Daily Telegraph o essencial do que havia a dizer sobre o pequeno espectáculo em que o “detestável Eu” (Pascal vem hoje em dia repetidamente ao espírito) exibiu a sua esplêndida tirania à revelia de qualquer vestígio de pudor. A partir do momento em que cada um conta a “sua” verdade, a partir do momento em que a verdade é definida como a expressão subjectiva de um sentimento, não há limites à vista para o exercício da auto-vitimização. O racismo conspira contra nós, o sistema conspira contra nós, a imprensa conspira contra nós. Tudo conspira. A grande alcova sentimental de Oprah serviu às mil maravilhas para tal exercício. Meghan Markle aproveitou excelentemente para se tornar num símbolo dos tempos presentes.

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Os democratas americanos gostaram, sobretudo da parte do racismo de que ela se queixou ser vítima e da opressão da família real que, de acordo com Megan, lhe causou distúrbios mentais. A Casa Branca fez saber que apreciava a sua coragem e franqueza. Hillary Clinton não conteve a sua emoção. A jovem poetisa negra que leu versos seus na cerimónia de posse de Biden, Amanda Gorman (que não pode ter tradutoras brancas, porque ter tradutoras brancas equivaleria a pactuar com o “racismo sistémico”), escreveu que “Meghan foi a maior oportunidade da Coroa para a mudança, regeneração e conciliação numa nova era. Eles [a Família Real] não maltrataram apenas a sua luz, mas perderam-na”. A New Yorker extasiou-se. E não sabem eles ainda que o notório racista Eça de Queiroz foi cônsul em Newcastle e Bristol! Quando souberem… Aparentemente, estarão então reunidas todas as condições para uma declaração de independência das colónias… Democratas, ainda um esforço!

A loucura metódica do delírio sentimental em que a subjectividade se expressa (e a partir do qual passa a definir a verdade) não conhece qualquer princípio de limitação. E é isso que é particularmente assustador, porque são os princípios de limitação que colocam travões ao arbitrário. Se não há tais princípios – se tudo, por exemplo, pode, em tese geral, ser apresentado como “racista” -, reina o arbitrário total. E é para esse mundo de total arbitrário que alegremente caminhamos. Pensar é uma actividade que se assemelha a pescar à linha. É preciso ter paciência, esperar, até que alguma ideia morda. Infelizmente, hoje em dia aquilo que passa por pensamento segundo a filosofia reinante na grande alcova sentimental assemelha-se mais à pesca de arrasto: a indústria da cultura do cancelamento usa o mais destrutivo dos métodos e transforma o fundo do oceano da cultura num deserto.

É tudo uma questão de tempo. Ainda ontem li que as autoridades de Hull ponderam, no seguimento de pressões do Black Lives Matter, remover a estátua de Philip Larkin, o muito grande poeta que foi, durante cerca de trinta anos, bibliotecário da universidade local. Razão: na sua correspondência encontrar-se-iam propósitos racistas contra os negros. Não vale a pena notar que as coisas ditas (ou escritas) em privado são ditas (ou escritas) de um modo que, pela sua própria natureza, pressupõe uma enorme latitude de interpretações, nem referir a admiração de Larkin pelo jazz negro, sobre o qual escreveu extensamente. E não vale a pena porque o pensamento de arrasto contemporâneo é incapaz de distinguir os vários planos em que cada existência individual se move. O culto do schmaltz interdita à partida qualquer percepção da arte e da grandeza em geral e qualquer verdadeiro entendimento do significado das partes doentes da grandeza. Tudo é apanhado na sua rede. Na grande rede da alcova sentimental da grande vitimização de que Meghan Markle foi apenas mais uma ilustre e muitíssimo profissional cliente. Não são de facto apenas os maus romances que nos dizem, para nosso grande incómodo e desprazer, a verdade sobre os seus autores.