O inquérito sobre os abusos sexuais na Igreja Católica e o seu encobrimento pela hierarquia eclesiástica justifica todo o escândalo e indignação. É verdade que a Igreja não foi a única instituição em que abusos aconteceram e foram encobertos. Basta lembrar o processo Casa Pia. Como muitos já perguntaram, o que revelaria um inquérito semelhante a instituições do Estado com tutela de menores ou frequentadas por menores? Também é verdade que a indiferença pelo abuso sexual de crianças foi, até tempos recentes, suficientemente grande para Gabriel Matzneff, em França, poder fazer literatura durante décadas com a sua pedofilia, e ser grandemente admirado por toda a elite parisiense, a começar pelo presidente da república François Mitterrand. O que é grave, no que diz respeito à Igreja Católica, é que da Igreja não se esperava isso, ou mais exactamente: podendo admitir-se não ser possível evitar um ou outro caso, não se esperava que a hierarquia eclesiástica os tolerasse, como tolerou, ao escondê-los.

A Igreja Católica, em Portugal, continua a ter importância e a exigir-se dela uma perfeição que não se espera de mais nenhuma instituição. A própria discussão provocada pelo inquérito sugere isso. Daí que as visões laicistas de uma iminente ruína da Igreja pareçam algo exageradas. Não foi aliás esta a primeira vez que alguém, do alto de um púlpito jacobino, aproveitou um escândalo eclesiástico para declarar liquidadas a tradição apostólica, a autoridade do papa ou o celibato do clero. Os então chamados “livres pensadores” passaram o século XIX a anunciar o fim da Igreja. Uns esperaram abolir o catolicismo em duas ou três gerações; outros confiaram em que, no mínimo, haveriam de casar os padres. Para isso, usaram a propaganda, mas também a força, quando por acaso tiveram poder. No século XIX, não acreditaram que a Igreja sobrevivesse à ciência e à democracia; no século XX, ao Estado social e aos novos costumes. Acontece que a Igreja sobreviveu, mesmo sem poder político, mesmo sem coação social, e mesmo sem ser sempre servida pelos melhores e mais exemplares, como se viu agora.

Para os crentes, será um sinal da providência divina. Quem não tem fé, poderá talvez pensar em outras causas. Por exemplo, no fracasso abjecto das alternativas “científicas” à religião revelada, como as ideologias totalitárias do século XX, ou na farsa pueril das opções “espiritualistas”, como os movimentos de tipo “New Age”. As tradições religiosas, mesmo em plena modernidade, continuaram a corresponder, melhor do que quaisquer substitutos, a necessidades e inclinações fundamentais. Românticos e modernistas, por mais ateus ou agnósticos, permaneceram sensíveis ao mistério e à estética do cristianismo. A tradição das igrejas cristãs deu a sua expressão mais intensa a duas ideias aparentemente contraditórias: a ideia de que o poder humano é limitado, e a ideia de que, apesar disso, a redenção é possível. Para os crentes, Deus é a solução. Para muitos não-crentes, importa manter a questão nos termos simultaneamente exactos da tragédia e da esperança, e na nossa cultura ocidental é a tradição cristã que melhor o consegue. É por isso (e não por simples inércia social), que nem a ciência, nem o Estado laico nem os escândalos eclesiásticos cancelaram em Portugal a Igreja Católica, e é por isso que ainda hoje, com a prática religiosa em retrocesso, a Igreja inspira tanta discussão. Daí que, sem diminuir nem relativizar o inquérito, seja provável que a Igreja continue por aqui no próximo século, com a sua tradição, o seu papa, o seu clero e, claro, os seus devotados inimigos.

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