Uma das coisas mais comovedoras em Portugal é o zelo dos indiferentes e dos ateus pela Igreja Católica. Não vão à missa, “não acreditam em nada daquilo”, mas ei-los sempre cheios de opiniões sobre o que devia ser o catolicismo. Cento e dezassete anos depois da separação, a Igreja continua a ser discutida como se fosse o equivalente religioso do Serviço Nacional de Saúde.
Não faltou por isso quem, não sendo católico nem recasado nem pretendendo ter acesso aos sacramentos, se sentisse “importunado” pelo que o Cardeal Patriarca de Lisboa terá recomendado aos católicos divorciados que, casados outra vez, queiram ter acesso aos sacramentos. Acontece que a doutrina da Igreja corresponde a uma tradição dogmática que ao clero é dado interpretar, mas não actualizar conforme os likes das redes sociais. A única questão, portanto, seria saber se o que o Patriarca disse está de acordo com essa doutrina. Os críticos, porém, alegam que a Igreja precisa de se “modernizar”, se quiser “sobreviver”.
Não vale a pena lembrar que a grande “modernização” da Igreja, na década de 1960, coincidiu com o seu maior declínio, embora a causalidade seja discutível. A questão é perceber porque é que tanto indiferente e ateu parece angustiado com a “modernização” da Igreja. Ainda acreditam, apesar do seu laicismo, que a Igreja e a sociedade são a mesma coisa? Acontece que a grande ambição do laicismo nacional, desde o século XIX, não foi apenas “separar” o Estado da Igreja, mas também dominar e usar a Igreja. Os laicistas detestavam a Igreja enquanto veículo da revelação divina e organização dirigida pelo Papa. Mas apreciavam-na enquanto máquina para fomentar consenso na sociedade. De resto, mesmo os mais materialistas suspeitavam da aptidão de um Estado “sem espírito” para satisfazer todas as aspirações. Nunca foram só os cristãos a saber que nem só de pão vive o homem. Por isso, os jacobinos arranjaram um Culto do Ente Supremo, Auguste Comte inventou uma réplica “científica” do catolicismo, e até os bolchevistas tiveram a sua Comissão de Imortalização. Claro que é possível inventar cultos seculares. Mas haverá quem prefira, para o mesmo fim, uma Igreja politicamente correcta, disponível para actualizar constantemente a doutrina à luz das modas certificadas em Hollywood.
Para a Igreja Católica, porém, este não é um simples caso de pressão: é também um caso de tentação. O catolicismo pode continuar a confrontar esta sociedade com as exigências da tradição evangélica, suscitando divisão e conflito. Mas pode também limitar-se a usar a sua antiga autoridade para ajudar cada um a fazer o que lhe apetece ou lhe manda a “modernidade”, sem problemas de consciência. Seguindo a primeira opção, a Igreja acabaria talvez por se tornar uma contra-cultura, numa qualquer versão contemporânea das catacumbas; seguindo a segunda, talvez possa aspirar a fazer parte da ordem pública, enquanto resumo oficioso dos consensos em vigor, quase como nos tempos do Estado confessional, mas sem outra definição que não a de uma vaga “espiritualidade” de tipo New Age.
No fundo, o verdadeiro contexto da discussão sobre as instruções do Patriarca para os católicos recasados é a tensão entre estes dois caminhos, que se tornou notória com as elaborações do papa sobre o mesmo tema. Pelos vistos, a hierarquia portuguesa não escapou à discórdia. Noutras paragens, nesta época de polarização, já há gente a vislumbrar sintomas de “cisma”. Até agora, a Igreja Católica conseguiu evitar escolher. A uma fase, segue-se sempre outra fase, com uma ênfase diferente, num movimento pendular: depois do Vaticano II, houve a Humanae Vitae; depois de João Paulo II, Francisco. Muitos ter-se-ão convencido que todos os caminhos, no fundo, são paralelos e levam ao mesmo destino. Mas – e se não for assim? E se esses caminhos se bifurcarem?