1 Raramente o país pôde radiografar com tanta nitidez a noção de “senhor e dono” aplicada a António Costa – e  que nele encaixa com temível perfeição – como agora com a publicação do muito interessante livro “O Governador”. A obra de Luís Rosa sobre Carlos Costa que naturalmente põe especial enfoque – rigoroso e detalhado – nos dez anos em que o ex-Governador liderou o Banco de Portugal foi um inesperado estorvo causado por um muito indesejado intruso. Acedendo à Rua do Ouro em 2010 convidado pelos socialistas e lá permanecendo para um segundo mandato, dessa vez a convite da coligação PSD/CDS, liderada por Passos Coelho, Carlos Costa viu muita coisa, ouviu muita coisa, lidou com muita coisa, fez muita coisa. Para o bem e para o mal. E agora prestou contas, as suas. Ainda bem, coisa rara. Os portugueses são avessos ao exercício: não avisou já António Costa que “memórias, guarda-as para ele”? E Marcelo com a vertigem que o caracteriza não anunciou, sem ser preciso, que também não as faria, como se fossem pecado? Santo Deus, pesados dias estes, se alguém souber o telemóvel do Guinness Book of Records que os meta lá (aos dias).

Que dizer de facto das reações das esquerdas ao livro? Tão depressa apetece rir de tão absurdas, básicas, lamentáveis, como apetece chorar com pena dos seus amestrados autores. Nem é preciso que a voz do dono seja demasiado audível para que o coro se permita desafinar do tom autorizado: a voz existe e isso chega para a obediência. É uma escolha e pelos vistos a família dá-se bem com ela. Não é porém de riso ou de choro que importa ou sequer interessa falar. Importa isso sim, notar que o líder do PS se assustou. E que não é senão o susto que explica a obrigatoriedade – e o calibre – desta reação.

2 O primeiro sinal veio logo da “certificação” da plateia que assistia ao lançamento do livro “O Governador”, muito inteligente e assertivamente apresentado por Luís Marques Mendes: eram só “passistas” e cavaquistas. Gente sem direito de cidade e sobre a qual há ordem de disparo imediato. Pior: gente que, à luz do dia, ousara juntar-se na mesma plateia. E não fosse alguém lembrar que o primeiro, Passos, ganhou as eleições a Costa no único combate político que travaram; e que o segundo, Cavaco, obteve 4 maiorias absolutas, era indispensável disparar. Dispararam. As balas da má fé impediram-lhes de nomear as figuras públicas que lá foram por gosto ou respeito e que nada têm a ver com o território passista, cavaquista, psdeísta, e por aí fora: nem o desejam, nem o frequentam.

O poder socialista, porém, frequenta e pratica quanto pode e a inverdade, a manipulação, a omissão. E como a “ voz do dono” existe, sucede que logo a seguir vem a subserviência, a dependência e talvez mesmo o medo. Não é novidade, vem nos livros. O que é novo é o ditirâmbico grau a que chegou a subserviência, a dependência e talvez o medo.

O susto soprou contudo mais forte com o que o livro conta e com o que ali ficou agora fundamentado ou documentado. O que é outro modo de dizer que se está perante a constatação de um “modus faciendi” político que perturba e inquieta. O que é ainda outra maneira de afirmar que o pasmo sentido na apresentação do livro se veio a transformar numa indignação com fundamento. Amplo, sólido, verificável.

Gostar ou não gostar de Carlos Costa é secundário para o que pretendo dizer.

Qualquer um é (felizmente!) livre de considerar que ele errou, não agiu bem, interveio tarde. Sucede porém que a legitimidade da crítica a Carlos Costa não só não impede como não removerá o que o país ficou a saber sobre a interpretação que a liderança socialista faz – e pratica – sobre o que significa liderar o país. Uma coisa não se confunde com a outra. E mesmo que grande parte dos portugueses não venha a ler este livro, talvez descubram um dia que esse muito específico “modus faciendi” político possa vir a virar-se contra o feiticeiro.

3 Ainda um bocadinho a propósito de modos de, digamos, actuar politicamente, assistimos recentemente a um diálogo político de esplanada. Só faltava um chapéu de sol, daria mais verosimilhança ao que se ouviu há dias na residência oficial do primeiro-ministro, terceira figura na hierarquia do Estado, entre o próprio e o Presidente Lula. Um reencontro “natural” entre amigos do peito daquele lado esquerdo da política onde se está absolutamente certo que também muito naturalmente só esse lado garante o progresso do mundo e distribui futuros risonhos. Lula e António Costa falavam (uf, finalmente!), em família agora que Bolsonaro se sumiu mas metade do Brasil continua dele.

Foi aliás curioso de observar o tom deslocadamente intimista deste reencontro que não era no Largo do Rato ou na esplanada: o excesso de cumplicidade, os gracejos, a linguagem usada – a corporal e a outra – o à vontade no verbo (que teria aliás trucidado qualquer outro político estranho à família). Estavam ali um “Sr. Feliz e Sr. Contente” a exultar de felicidade e contentamento. Contabilizarão eles a parte que não se enleva nem se ilude com ambos e com o que tão jubilosamente protagonizam? E – já agora – qual deles, Lula ou António Costa, está neste momento mais ferido de asa e inspira mais cuidado político, apesar das suas recentes vitórias? Aquele que ganhou só metade do Brasil e só inspira hoje metade da confiança? O que governa para uma parte de Portugal, desinteressando-se ou mesmo insultando – é conforme – a outra? Percebemos que Lula sabe bem onde está metido apesar daquele linguajar “amigo”. Era em todo caso preferível não cair na tentação de o idolatrar politicamente só porque ele não é Bolsonaro. O homem pode ser um bocadinho perigoso: na casa dele e no continente onde vive. E como tal, no mundo, claro.

PS: Recomendo porque o livro “se” recomenda a ele mesmo. Chama-se a “Estagnação Socialista” (Gradiva) e o seu autor, André Abrantes Amaral, colega e amigo pediu-me que o prefaciasse (assim digo tudo de uma vez). Já escrevi “n” prefácios e apresentei outros tantos livros. Nunca porém me impedi de atender publicamente à qualidade de alguns deles. É o caso. Nestes tempos politicamente sombrios – dentro e fora de portas – há reflexões que nos aconchegam. Também é o caso.

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