Nunca conheci quem não fosse pela liberdade de expressão, a começar pela sua. Ainda que naturalmente limitada – a difamação, a injúria, o incitamento à violência ou à fraude, por exemplo, são crimes previstos na lei penal -, não restam dúvidas de que é absolutamente central em qualquer sociedade que se queira dizer livre.
Mas para que serve a liberdade de expressão? Por exemplo: posso defender que a cor da pele determina a capacidade intelectual de uma pessoa? Posso acreditar que um género é biologicamente inferior ao outro? Posso mentir sobre mim? Posso mentir sobre os outros? Posso dar opiniões com base em factos falsos? Posso defender realidades que a ciência atual rejeita?
Tudo isto são formas de expressão que, com grandes diferenças de grau – eu sei que estou a misturar muita coisa diferente – reputamos como de menor ou nenhum valor: mentiras, insultos, discurso de ódio, discriminação. E, ainda assim, a questão põe-se: se eu sou verdadeiramente livre para me expressar – se tenho um direito à liberdade de expressão -, não poderei ser racista? Não poderei ser machista? Não poderei ser mentiroso?
Como é, afinal: toleramos o discurso intolerante?
Vamos imaginar que dizemos coletivamente que não: não, o direito à liberdade de expressão não inclui estes discursos ofensivos, vis ou de menor valor. É um conforto: limpamos o espaço público deste tipo de intervenções e passamos a viver num lugar mais asseado.
Ficamos então com o que sobra: o que não ofende, o que não exclui, o que é verdadeiro. Mas quem define o que é ofensivo? Quem define o que é verdadeiro? A maioria? É uma hipótese. Afinal, em democracia, vinga a maioria.
Contudo, a maioria não é estanque. A maioria muda, evolui. E a verdade que aceitamos hoje é a mentira ofensiva de amanhã. Antes, a Terra era plana e as mulheres não votavam. Ai de quem viesse defender o contrário: fogueira com eles. Hoje, rimos com gosto e incredulidade, porque anda por aí um movimento que defende que a Terra é plana e erguemo-nos contra as desigualdades de género. E ainda bem: chegámos a um sítio melhor. Mas precisámos de quem contrariasse a maioria. Precisámos de dar espaço a todo o tipo de discurso, para que do confronto entre duas mundividências resultasse a melhor.
Vem-me tudo isto a propósito deste admirável novo mundo das redes sociais: o paraíso da comunicação livre, onde todos têm uma voz, uma oportunidade de expressar os seus pontos de vista e de entrar em diálogo.
Acontece, porém, que este paraíso de comunicação livre se tem vindo a tornar, progressivamente, num espaço de expressão governado por uma ditadura da maioria – aquilo a que se usa chamar o politicamente correto – onde se põe em causa não só o que foi dito pelo outro, mas o próprio direito do outro a dizê-lo.
O politicamente correto é, no fundo, um manual de regras para uma expressão higienizada. Regula-nos o conteúdo, a forma, o tempo e o meio da expressão.
Há palavras que não se podem usar nunca. Outras que não se podem usar com certas pessoas. Outras que não se podem usar em certas situações. Há coisas que não se dizem. Há momentos para dizer as coisas. Há palavras que podem ser ditas por uns, mas não podem ser ditas por outros. Há coisas com que não se brincam. Há brincadeiras que não são para agora. Há conversas que não se têm. Esta não é a altura certa. Isso não vem a propósito. Isso não se diz. Isso não se faz. Isso não se pensa.
O politicamente correto apresenta-se de cara lavada e com boas intenções: pretende defender os outros da ofensa, do mau trato, da discriminação. Tem, contudo, a perversidade de nos tornar polícias do discurso, dos outros e do nosso, que monitorizamos selvaticamente em busca de transgressões expressivas. E assenta, sobretudo, num engano generalizado e perigoso: o de que o espaço público de expressão não permite a expressão que ofende, que discrimina, que é falsa ou de que simplesmente não gostamos.
Ora, isso não é verdade: nem nós temos autoridade para dizer ao outro o que ele pode ou não pode dizer – insultando-o e perseguindo-o até ele se calar -, nem temos qualquer pretensão a que o discurso dos outros não magoe os nossos sentimentos, ofenda as nossas crenças ou, de um modo geral, nos provoque qualquer alteração negativa de estado de espírito.
O que me leva à questão com que comecei: para que serve a liberdade de expressão? Porque é que a Constituição – a nossa e muitas outras – fez questão de assegurar esse direito? Será que era preciso garanti-lo para proteger as opiniões maioritárias? Para permitir o discurso que não causa desconforto a ninguém? Para afirmar verdades universais e pacíficas?
Faria pouco sentido. Não: o direito à liberdade de expressão serve precisamente para proteger a liberdade, nossa e dos outros, de nos expressarmos, mesmo – ou sobretudo – quando essa expressão é incómoda. Não é grande feito reconhecer ao outro a liberdade de me tratar bem, de concordar comigo ou, no geral, de ser uma pessoa decente. O que precisa de defesa é a expressão que desagrada, a opinião que incomoda, o comentário que suja ou a atitude que escandaliza.
A liberdade de expressão serve para proteger aquilo que nós não gostamos que os outros digam, façam ou pensem. O racista pode ser racista. O homofóbico pode ser homofóbico. O mentiroso pode ser mentiroso. E toda a gente pode ter opiniões insultuosas e sem sentido.
É uma pena que existam? Será. Pessoalmente, acho lamentável. Mas não me cabe a mim proibi-los: cabe-me contrariá-los. É assim que funciona o jogo da livre expressão: cada um tem a sua visão e no final de uma longa, suja, incómoda e barulhenta refrega, provavelmente vai cada um à sua vida com a opinião que já tinha. Contudo, há em cada debate a pequena possibilidade de persuadirmos alguém, seja o outro ou os que assistiram. É também essa possibilidade que a liberdade de expressão quer proteger.
Nas redes sociais, como fora delas, cada um é responsável pelo que diz e justamente avaliado pelos outros em função disso. Aos racistas, aos homofóbicos, aos machistas, aos mentirosos e àqueles que estão simplesmente errados, deve responder-se sempre, incansavelmente, com discursos de sinal contrário, com argumentos, com factos e com críticas.
É através do confronto público, aceso e constante, dessas formas de expressão com as suas falhas lógicas, com os seus erros de base e com os seus preconceitos que as combatemos e derrotamos. Suprimir este tipo de discurso – proibindo-o, ostracizando-o – é escondê-lo na penumbra, é levá-lo para onde não o vemos nem o podemos criticar, mas onde ele continua a fazer o seu silencioso trabalho. Esse discurso tem direito a um espaço na discussão pública – e é só por isso que o podemos vencer.
Tolerar uma expressão não significa aceitar o seu conteúdo. Mas significa aceitar a sua existência. Da próxima vez que se escandalizar, lembre-se disso.
João Marecos tem 26 anos, é advogado e estudante de mestrado na New York University. Integrou os Global Shapers de Lisboa em 2014. É um dos autores da página “Os Truques da Imprensa Portuguesa”
O Observador associa-se aos Global Shapers Lisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa. Ao longo dos próximos meses, partilharão com os leitores a visão para o futuro do país, com base nas respetivas áreas de especialidade. O artigo representa, portanto, a opinião pessoal do autor enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.