Desde que Mariano Gago foi ministro da Ciência, a pressão para que a publicação científica portuguesa privilegie revistas internacionais e a língua inglesa não tem deixado de aumentar. E a contestação, em nome da defesa da língua portuguesa ou da dignidade nacional, também não. Longe de mim entrar na discussão, que vai muito além da minha chinela. Limito-me a contar aqui três histórias, das quais os leitores são livres de retirar as conclusões que bem entenderem.
1. A electroforese (o fenómeno de separação de partículas em suspensão quando submetidas a uma corrente eléctrica) foi descrita pela primeira vez pelo russo Ferdinand Reuss em 1809. Mas só em 1937 é que apareceram as primeiras aplicações práticas ao estudo dos líquidos biológicos.
Uma delas, a electroforese em coluna (moving boundary electrophoresis), deve-se a um sueco, Arne Tiselius. A outra, a electroforese em papel de filtro, foi inventada por um brasileiro, um tal P. Konig. O aparelho de Tiselius tinha seis metros de comprimento e assentava em pesadas fundações de betão (para anular o efeito das vibrações). O aparelho de Konig cabia numa bancada de laboratório, era simples e barato. O próprio Tiselius disse mais tarde que o aparelho de Konig é que “permitiu a aplicação clínica da análise electroforética”. Mas foi o método de Tiselius que se popularizou nos anos seguintes, valendo-lhe o prémio Nobel da Química em 1948. A invenção de Konig, por sua vez, passou totalmente despercebida. Em 1950, quatro laboratórios americanos e europeus voltaram a “inventar” a electroforese em papel – alegadamente sem terem conhecimento do trabalho de Konig.
Tiselius publicou em inglês, nas Transactions of the Faraday Society, uma revista da Royal Society of Chemistry. O trabalho de Konig apareceu em português, nos resumos de um congresso de química sul-americano publicados por uma revista brasileira. Uma pesquisa no Google encontra facilmente o artigo de Tiselius, mas não o de Konig.
2. Luiz Câmara Pestana foi um bacteriologista brilhante numa época em que a bacteriologia clínica dava os seus primeiros passos. Nos escassos dez anos que durou a sua carreira, entre 1889 e 1899, iniciou em Portugal a vacinação contra a raiva (uma descoberta de Pasteur), isolou e caracterizou uma variante do vibrião da cólera (descoberto em 1893 por Koch) e criou e dirigiu o primeiro laboratório de bacteriologia do país, o Real Instituto Bacteriológico de Lisboa (que depois recebeu o seu nome e que ainda existe, ali ao Campo de Sant’Anna).
Foi graças à vacina da raiva que Câmara Pestana pôde estudar em Paris, em 1891, com Émile Roux, discípulo de Pasteur, e depois com Isidore Straus, discípulo de Roux. O governo constitucional, que gastara em anos anteriores 17 contos de réis com o envio dos mordidos ao Instituto Pasteur para serem vacinados, considerou mais vantajoso investir na formação de uma unidade de vacinação local – para o que pagou a Pestana três meses de estadia (o resto do tempo que lá passou, pagou-o do próprio bolso). No Laboratório de Patologia Experimental da Faculdade de Medicina de Paris, Pestana estudou o tétano, incluindo os métodos de produção da toxina tetânica e de desenvolvimento de uma anti-toxina, e, no regresso a Lisboa, em 1892, comunicou à Sociedade de Ciências Médicas de Lisboa que, ao “injectar em coelhos doses sucessivamente crescentes [de toxina tetânica e] aproveitando o soro [desses coelhos] para injectar outros animais, [conseguira que] um dos coelhos [assim imunizados] não morresse, ainda que tivesse recebido 2 centímetros cúbicos de toxina, injecção idêntica à que produziu a morte [em coelhos não imunizados]”. Era a base da soroterapia e da imunidade passiva.
Nesse mesmo verão de 1892, Emil von Behring, que trabalhava com Robert Koch, publicou as suas próprias investigações. Publicou em alemão, à época uma das duas línguas fundamentais da bacteriologia (a outra era o francês). Se procurarmos hoje nos livros referências à soroterapia, encontramos o nome de von Behring e os dos seus colaboradores directos, como Kitasato (um japonês). Nem uma palavra sobre Pestana.
Behring foi o primeiro galardoado com o prémio Nobel da Medicina. Luiz Câmara Pestana morreu em 1899, aos 36 anos, de peste bubónica. Fora enviado pelo governo ao Porto, onde a epidemia grassava, para substituir, como director do Posto de Saúde Municipal, o seu colega Ricardo Jorge, que a população da cidade, desagradada com as medidas de higiene impostas, ameaçara de morte.
3. Egas Moniz, único prémio Nobel da Medicina português, não precisa de apresentações. A história da ciência reconhece-lhe duas contribuições maiores: a angiografia cerebral e a leucotomia pré-frontal.
A angiografia (que desenvolveu em Portugal, com colaboradores portugueses como Almeida Lima) valeu-lhe uma primeira e geralmente desconhecida nomeação para o Nobel (em 1928, um ano apenas depois das primeiras publicações sobre a técnica). Vale a pena rever a bibliografia: dos oito artigos que publicou em 1927 sobre angiografia, seis são em francês, em revistas francesas. E, das publicações científicas que fez nos vinte anos seguintes, muitas delas sobre a leucotomia, que lhe valeu enfim o Nobel em 1949 (e também, nas décadas seguintes, uma injusta condenação como “fascista”), a maioria foi feita em francês e em alemão (as duas línguas fundamentais das neurociências, à época).
Ainda hoje o sifão formado pela artéria carótida interna ao atravessar o osso temporal se chama “sifão de Egas Moniz” – o homem que o descreveu.