Bruscamente, em vésperas da demissão formal do governo, e a um mês de distância da dissolução anunciada do parlamento, “aterrou” com estrondo no espaço público o chamado caso das gémeas brasileiras pela mão da TVI, que se empenhou, desde o primeiro momento, em amplificar a sua “investigação”, com alguns tiques de sensacionalismo.

Percebeu-se desde o início que a telenovela em “prime time“ não era inocente e “trazia água no bico”…

A história remonta a 2019, quando Marta Temido mandava na Saúde e Lacerda Sales, era seu secretário de Estado – e agora, por acaso, mandatário distrital de José Luís Carneiro, um dos candidatos à sucessão de António Costa, a subir nas sondagens.

É um mistério que só agora, com o primeiro ministro demitido e o governo em gestão, a “investigação” se tenha concretizado, de rompante, chegando a ocupar quase meia hora do jornal da noite da TVI, um exagero. Percebeu-se, todavia, depressa quem era o alvo escolhido: o Presidente da República.

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Infelizmente, este “pôs-se a jeito” e – mal aconselhado ou agindo por intuição sem ouvir ninguém – caiu na esparrela de dar cobertura à “investigação”, ao convocar uma conferência de imprensa surreal, na qual deixou transparecer um insólito embaraço.

Tanto bastou para que os comentadores do costume desencadeassem um processo de intenções, e, como seria de esperar, na lógica de “quem se mete com o PS leva” (e o PS ficou em pânico com a demissão aceite do primeiro ministro) desdobraram-se em dúvidas sibilinas, nunca satisfeitas com os esclarecimentos presidenciais, para desgosto de Marcelo, que se habituou a ser amado.

Num ápice, o caso das gémeas brasileiras (ou luso-brasileiras) impôs-se e afastou da paisagem mediática os sucessivos escândalos ocorridos na vigência deste governo, com suspeitas graves e fumos de corrupção, que levaram à exoneração do primeiro ministro e à dissolução do parlamento.

E não mais se falou sequer do facto de António Costa ser suspeito e estar a ser investigado pelo Ministério Público no âmbito de inquérito instaurado no Supremo Tribunal de Justiça – a sede própria e foro competente – por causa do lítio, do hidrogénio, e de outras nebulosas.

E mesmo a descoberta rocambolesca de dezenas de milhares de notas, em dinheiro vivo (“arquivadas” nas estantes do então chefe de gabinete do primeiro ministro em S. Bento), foi removida para a “cesta” secção, como se fosse um “fait divers” sem importância, na linha do que já acontecera antes com as cenas indecorosas no ministério então titulado por João Galamba, coroadas com a intervenção abusiva e nunca esclarecida do SIS.

Ou seja, uma história retardada, tecida à volta das gémeas brasileiras, beneficiárias de um tratamento caro e experimental no Hospital de Santa Maria, há quatro anos, foi suficiente para a TVI – em articulação com a CNN Portugal –, lançar a hipótese de estarem criadas as condições para uma resignação ou destituição de Marcelo Rebelo de Sousa, por causa de ter reencaminhado para o governo um e-mail do filho, imprudente e pouco avisado sobre essa matéria.

Com esta crise, António Costa, apesar de dizer-se “frustrado” e “magoado”, ganhou novo fôlego, com honras de ser entrevistado ontem, em dose dupla, nos dois canais das TVI, onde também tem assento, como comentador, o principal guru que o aconselha.  Não é sério.

Tanta hipocrisia, santo Deus!… Valha-nos a franqueza do ex-ministro socialista Correia de Campos, que declarou, sem rebuço, num debate televisivo sobre o assunto, que “tinha um assessor só para as cunhas”, cuja tarefa consistia em filtrar as que lhe pareciam “válidas”, eliminando as restantes.

Ou valha-nos, ainda, o testemunho frontal do reputado médico cirurgião Eduardo Barroso, ao escrever que “devo ter recebido centenas de pedidos durante as décadas em que fui responsável por um dos maiores Serviços de Cirurgia do País (…), vindos das mais variadas pessoas, desde colegas, amigos, políticos, jornalistas, artistas, empresários, dirigentes desportivos, escritores e muitos mais”. Afinal, a “cunha” faz parte da cultura lusitana…

O certo é que, graças ao oportuno ruído mediático, António Costa respirou fundo de alívio, e, já recuperado das “emoções“ nas despedidas parlamentares, ei-lo eufórico em inaugurações, acompanhado por governantes em jeito de séquito, quando o mais elementar pudor o aconselharia a evitar essas manobras de propaganda pré-eleitoral, uma réplica da era de Sócrates.

A pretexto de que o país não pode parar, Costa promete mais eventos, mesmo em gestão, contrariando a reserva que lhe seria exigível.

A exploração intensiva do caso das gémeas luso-brasileiras, se não foi inventada pelos especialistas em marketing político e gestão de crise, ao serviço do governo, mais parece.

Nada obriga Marcelo a resignar, como alguns “profetas” vieram reivindicar no campo das probabilidades, nem parece haver o menor suporte para o parlamento, quase dissolvido, promover o debate sobre a sua destituição, abrindo caminho a que Augusto Santos Silva, como segunda figura do Estado, pudesse sentar-se em Belém. Um susto.

Num trabalho realizado por este jornal, ficou, aliás, demonstrado que a maioria dos partidos com representação parlamentar não está disponível para viabilizar um projecto de destituição do Presidente. É uma questão de bom senso a opor a uma histeria concertada.

A realidade, porém, é que mesmo que os defensores da ideia esbarrem na impossibilidade de “levar o Presidente ao tapete”, este corre o risco de ficar diminuído, perante uma ofensiva mediática que visa condicioná-lo e que serve à maravilha de desforço ao PS caído em desgraça.

Doravante, de cada vez que Marcelo comparecer em qualquer evento, já sabe que “vai ter à perna” jornalistas que lhe perguntarão, impacientes, sobre as gémeas ou a sua resignação, como têm assediado Montenegro sobre as suas intenções em relação ao Chega…

Parece óbvio que a telenovela das gémeas obedece a um guião para durar, na tentativa de crucificar o Presidente, impedido de culpar o filho – como este, aliás, merecia, enquanto protagonista do imbróglio –, poupando António Costa a prestar contas da péssima governação ou a explicar como só agora se lembra das grandes obras públicas, que congelou para caução das “contas certas”.

Reconheça-se que era difícil encontrar melhor “biombo” para esconder os desastres na Educação (e o Relatório PISA sobre o mau desempenho dos alunos no quadro da OCDE) , na Saúde (com o escândalo das urgências nos hospitais públicos, fechadas ou entupidas) , na Justiça (onde os megaprocessos continuam a marinar e a prescrição à espreita), na Defesa (com as inacreditáveis derrapagens e obscuridades nas despesas de obras em estabelecimentos militares), na Habitação (com um plano radical e utópico para esquecer ), ou na Agricultura (onde a titular da pasta conseguiu incompatibilizar-se com as associações do sector).

Em oito anos de governação socialista, o País regrediu, estagnou. Emperrou.

Hábil em negociações de bastidores, perito em “saltar muros”, como o comprovou a “geringonça”, Costa não é um empreendedor. Faltou-lhe sempre o “golpe de asa”, como se viu também ao longo do seu trabalho de autarca em Lisboa.

Pior: Costa teve visíveis dificuldades na escolha de governantes e colaboradores próximos, preferindo as fidelidades em lugar das competências com folha limpa. Faltou-lhe sabedoria na captação dos melhores. O governo cessante demonstrou-o de uma forma eloquente.

Os erros de “casting” sucederam-se, e pagaram-se caro. Na Saúde como na Educação, prevaleceu o primado das ideologias, enfraquecendo o SNS, enquanto na escola pública os “rankings” anuais foram o espelho da sua degradação.

Então nas Infraestruturas, um ministério nuclear, as incongruências ficaram à vista de toda a gente, com a dupla Pedro Nuno Santos – João Galamba, a entrar directamente para a galeria das tolices.

Comprometido com esta gente, António Costa estava condenado, à partida, a fingir que governava. O caso das gémeas veio mesmo a calhar.

Depois, quem já se lembra, por exemplo, de que o governo e o PS, para além das muitas trapalhadas em que se envolveram, quiseram também criminalizar actos de discriminação por “convicções políticas ou ideológicas”, com penas agravadas se as “ofensas” fossem reproduzidas nos media?

Recuaram, é certo, à última hora, sob pressão, designadamente, do PSD, que considerou “inacreditável” na comissão de Assuntos Constitucionais a ousadia de proporem, novamente, o “lápis azul” da censura e o “regresso ao que existia no Estado Novo”.

Mas o propósito era cristalino, e estava inscrito na proposta socialista, até ser retirado da ordem do dia. Por essas e por outras, a quem interessa empolar o caso das gémeas brasileiras? Uma (severa) lição para Marcelo e uma resposta que nem precisa de explicador…