Morte assistida confirmada. Legalizá-la também “é cumprir Abril” declarou na Assembleia da República a deputada socialista Isabel Moreira. Quantas vezes nos últimos anos os propósitos mais excêntricos foram justificados por esta invocação de uma fé laica: “Cumprir Abril”?

O que quererá dizer exactamente “Cumprir Abril”? Será cumprir uma rota previa e superiormente traçada como acontecia no marxismo científico em que a sociedade socialista futura era uma certeza tão incontornável quanto os átomos? Ou uma espécie de destino-fado a que, tal como acontecia com as personagens dos mitos, não conseguiremos escapar? Ou ambas as coisas?

Em primeiro lugar, o óbvio: o golpe de estado de Abril de 1974 não é para aqui visto nem chamado. Em 1974, caso então existisse eutanásia, esta seria mais um crime do Estado Novo que, incapaz de assegurar cuidados de saúde e condições dignas de vida à população, usaria a eutanásia para esconder esses falhanços. (Que exemplos patetas e patéticos não fariam com esta temática os autores dessa sequência mirabolante de Não Podias! em que, mais que celebrar a democracia, a comissão das celebrações do 25 de Abril pretende salvar a imagem dos governantes de hoje através da invenção do passado.)

Fosse qual fosse o lugar da barricada em que se estivesse, aos olhos de 1974 a opção pela eutanásia  nunca seria vista como uma conquista ou um direito. (Sim, já sei que a esperança de vida em Portugal era muito inferior e que as questões da sobrevivência não se colocavam nos termos actuais, mas o anacronismo também é válido para quem justifica a aprovação de legislação em 2023 como a consequência de se estar a cumprir Abril).

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Em segundo lugar, e mais importante, “cumprir Abril” tornou-se a profissão de fé do credo do progressismo cívico por agora convertido na religião oficial do estado português. Antecipadamente sabemos que havemos de “cumprir Abril” e portanto não interessa quantas vezes rejeitamos aquilo que os sacerdotes da Igreja Abril de Todos os Dias nos anunciam como o futuro, porque o futuro é como eles dizem que vai ser. Nós apenas estamos aqui para cumprir o pré-determinado.

Da eutanásia à regionalização, acabamos invariavelmente vencidos por essa escatologia da História em que a democracia se torna cansaço. Caso nos afastemos dos dogmas, a decisão terá de ser repetida uma e outra vez até que acabemos a aceitar com fatalismo o que tínhamos anteriormente rejeitado por convicção. Ora o contrário não é válido: há 28 anos que a eutanásia se discute em Portugal. Foi sempre rejeitada. Agora que foi aprovada o assunto é dado por encerrado. Ou na versão mais arquetípica: cumpriu-se Abril.

Esta espécie de Livro do Progressismo onde está inscrito o tempo que há-de vir está a levar-nos aos maiores absurdos: no meio do falhanço das medidas gerais, o que ocupa a atenção são os casos particularíssimos e os ainda mais excepcionais dentro dos excepcionalíssimos. E por isso, ao mesmo tempo que se diz que legalizar a eutanásia é cumprir Abril, já se interiorizou o caos nas urgências hospitalares. Ou em que um Governo que assiste à degradação da qualidade da escola pública inventa comissários do género para que as crianças lhes declarem a sua identidade e persegue quem se opõe a esta cruzada. (A propósito, com as escolas a funcionarem irregularmente há meses o que teria sido se a tutela dos filhos do casal Mesquita Guimarães tivesse sido entregue à escola como defendiam os prosélitos da religião da cidadania?)

Mas pior que a habituação ao absurdo são os erros que não se denunciam: ao contrário do que intuo que actualmente sucede com a eutanásia, não duvido que a esmagadora maioria dos portugueses rejeita o que está a acontecer com as crianças nas escolas no âmbito da chamada autodeterminação de género mas cala-se. Então porquê o silêncio? Porque é muito mais difícil ser tratado como herege do que como opositor.

Quando se debatem ideias e projectos está-se entre pessoas que fazem diferentes escolhas. Mas aquilo em que estamos não é isso. O que temos são fiéis de uma religião laica que têm a certeza sobre o que será o futuro e que em cada opinião divergente vêem um empecilho nessa marcha para um paraíso que dizem glorioso.

Por mais impopular que seja escrevê-lo eu não quero cumprir Abril. Eu quero poder escolher.

PS 1. As manifestações dos activistas que alegamente pretendem salvar o clima, o planeta ou ambas as coisas pecam por defeito.  Em primeiro lugar, os referidos activistas, em coerência com a exigência que apresentam de que façamos a transição até 2025 para energias renováveis — eles garantem que “está comprovado” que isso é possível —, passam, já no ano de 2023 (eles são apenas uns activistas, não um país inteiro), a deslocar-se prescindindo do fóssil e seus derivados. Logo dizem adeus aos autocarros, automóveis e a todos e quaisquer veículos, eléctricos incluídos, a não ser que possam garantir que a energia dos mesmos é renovável. O mesmo se deve aplicar aos jornalistas-activistas que os entrevistam, também eles imbuídos da fé de que só a perfídia do capitalismo impede que se passe já para as energias renováveis.

Para o fim um pedido aos activistas: na próxima actividade vão amarrar-se aos muros da embaixada da China, em Lisboa. O sítio é bonito e, acrescento eu, aprazível para se ficar amarrado. Como devem saber os incensados activistas, a China não só tem muita prática a lidar com pessoas amarradas como está a aprovar a construção de centrais de carvão ao impressionante ritmo de duas por semana. Estão a perceber: duas por semana! Em 2021, Portugal, esse gigante poluidor mundial, fechou a única central a carvão que tinha em funcionamento. Quanto mais não seja os activistas podem explicar ao senhor embaixador Zhao Bentang que a China pode muito bem seguir o nosso exemplo.

PS 2. Quem tiver seguido as reportagens sobre a preparação dos activistas do “Fim ao fóssil” para a acção em Sines constata que os ditos activistas treinam como “romper bloqueios policiais” e “ser retirado nos braços dos agentes“. Traduzindo, os ditos activistas aprendem a forçar uma intervenção policial para em seguida conseguirem imagens para as televisões e redes sociais. Esta espécie de escola de activismos funciona no antigo quartel da GNR de Cabeço de Bola, em Lisboa. O quartel ficou desactivado e será no futuro dedicado à habitação. Enquanto tal não acontece está devoluto e, como não podia deixar de ser, logo apareceu uma petição em que “cidadãos em várias condições de vulnerabilidade social, como situações de sem abrigo, situações de refúgio, com vários grupos de activistas pelas questões climáticas, questões de género” vieram garantir que aí “coabitam com uma grande e diversa comunidade”. Onde é que a formação em “romper bloqueios policiais” e “ser retirado nos braços dos agentes” entra neste cenário idílico pago por nós é que não estou a perceber.