1. É conhecida a história do cientista que treinou uma rã a saltar ao seu comando de voz – “Salta!” – e, depois, lhe foi amputando as patas, uma a uma, observando o comportamento. Ao cortar-lhe a quarta pata, perante a constatação de que a rã não saltava, nem esboçava movimento, concluiu: uma rã, sem patas, fica surda.
Este cientista poderia ser politólogo encartado no nosso país. A sua extraordinária intuição explica boa parte do enredo em que se arrasta a nossa vida política.
Refiro-me à alegada “tradição” ou, para alguns, mesmo “convenção constitucional”, segundo a qual todo o governo minoritário de partido (ou coligação) mais votado teria “ipso facto” o direito de governar. Em contrapartida, por conseguinte, seria constitucionalmente ilegítimo agir parlamentarmente contra uma tal “tradição” ou “convenção constitucional”.
Salvo o devido respeito – que é muito – isto constitui uma enormidade. E, se fosse verdade, corresponderia a gravíssima lesão dos fundamentos democráticos do regime. Seria possível, à esquerda ou à direita, impor uma tal “tradição” contra uma maioria parlamentar? Seria possível, à esquerda ou à direita, condicionar ou coagir uma maioria parlamentar, simples ou composta, a ter de aceitar um governo a que se opusesse? Seria possível, à esquerda ou à direita, estatuir uma “tradição” contra maioria, simples ou composta, resultante de eleições legislativas? Obviamente que não. E, por isso mesmo, não existe qualquer convenção constitucional, porque, por natureza das coisas, não pode haver convenções constitucionais não-democráticas contrárias a uma Constituição democrática.
A nossa amiga rã, coitada, é que explica tudo. A “tradição” não passa de uma aparência.
2. É facto que, desde 1976, houve diversos casos de governos que puderam iniciar o mandato sem obstrução parlamentar. Isto explica as verdadeiras características do regime. O nosso regime (como, de resto, outros de suporte parlamentar, exclusivo ou predominante) é, como costumo dizer, um regime de maioria parlamentar de tolerância. Dizendo de outro modo: não é indispensável que os governos disponham de uma maioria parlamentar de apoio; mas é incontornável que disponham da tolerância de uma maioria parlamentar. Sem esta tolerância maioritária caem: ou porque vêem aprovada uma moção de rejeição ou de censura, ou porque vêem chumbados uma moção de confiança ou um instrumento fundamental de governação (um Orçamento de Estado ou outro acto essencial).
A exigência da maioria parlamentar de tolerância explica a nossa concreta história governativa. E explica, nomeadamente, que o PS tenha tido vários casos de governos minoritários (Soares, Guterres e Sócrates), enquanto, à direita, só houve um caso: Cavaco Silva, em 1985.
Tudo se resume, no fundo, a saber se a minoria que quer governar tem, ou não tem, condições políticas de início de mandato e de desempenho governativo. Se tem, segue; se não tem, cai. Por isso mesmo é que o PS tem tido mais facilidade neste estatuto: é que, por regra, é-lhe mais fácil navegar, em minoria, entre a sua esquerda e a sua direita, do que acontece com um governo encostado na direita parlamentar. Não fora um certo radicalismo laicista, poderíamos dizer que “Deus é justo”: por um lado, é certo que o PS (com dois partidos à sua esquerda) tem, historicamente, muito mais dificuldade do que a direita parlamentar em coligar-se ou obter maioria absoluta sozinho; mas, por outro lado, tem mais facilidade em assumir um estatuto de minoria de governo.
3. Voltemos à nossa amiga rã e à aparente surdez. Não é verdade que, em Portugal, todos os governos minoritários possam governar ancorados apenas na condição de força mais votada. É verdade que esses governos podem formar-se desde que inseridos no quadro de uma maioria parlamentar do seu campo, à esquerda ou à direita. Mas, se falta esta condição essencial, o governo minoritário não dispõe de condições políticas bastantes. E isto também não é matéria de qualquer convenção constitucional: não está escrito, não tinha que estar, não devemos imaginar que estivesse. É tão-só matéria de puras condições políticas.
Na verdade, não é natural, nem expectável que qualquer partido à direita viabilizasse a formação e o exercício de um governo à esquerda (ainda que do partido mais votado), num quadro de maioria parlamentar à direita. E, do mesmo modo, não é natural, nem expectável que qualquer partido à esquerda viabilize um governo à direita (ainda que do partido mais votado), havendo na Assembleia maioria parlamentar à esquerda. O normal à “esquerda”, em maioria, é derrubar a “direita”, tal como o normal à “direita”, em maioria, é derrubar a “esquerda”.
4. Por uma invulgar coincidência, nunca na nossa história constitucional houve um partido (ou coligação) mais votado que não estivesse compreendido numa mais ampla maioria parlamentar no seu campo político. Isto é, sempre que o PS foi mais votado houve maioria parlamentar à esquerda; e sempre que PSD ou PSD/CDS foram mais votados houve maioria parlamentar à direita. A aparência da surdez da rã está em que a clave está, obviamente, na maioria parlamentar à esquerda ou à direita e não tanto apenas no factor de ser-se o mais votado. Ora, o que é absolutamente novo nesta legislatura, com os resultados de 4 de Outubro, é que é a primeira vez em que há uma maioria parlamentar à esquerda, sem que nenhum partido de esquerda fosse o mais votado; e a primeira vez também em que há uma coligação à direita mais votada, sem que se tenha obtido uma maioria parlamentar à direita.
A condição democrática decisiva é a maioria parlamentar, como não pode deixar de ser. Por isso mesmo é que o PS só governou em minoria quando protegido por uma maioria de esquerda – que impedia PSD e CDS de o derrubarem. Mas, sempre que a esquerda do PS se conjugava com a direita parlamentar, o governo caiu (Soares 1977 e Sócrates 2011). E o PSD só governou em minoria, protegido por uma maioria de centro e de direita – que impedia o PS e a sua esquerda de o derrubar. Este último caso, do governo Cavaco 1985, é uma aparente excepção: o PRD, inicialmente, “não era carne, nem peixe” e viabilizou o governo minoritário de Cavaco Silva através de uma singular maioria ao centro; logo que, nessa mesma legislatura, o PRD se ancorou à esquerda, o governo PSD caiu e fomos para eleições.
5. Pensemos ainda mais um bocadinho sobre a tal convenção constitucional que garantiria todo o governo minoritário da força mais votada. Se à direita houvesse três partidos, significa isso que nunca mais haveria governos à direita, mesmo com maioria parlamentar de direita, uma vez que provavelmente todos aqueles partidos seriam menos votados do que o maior partido à esquerda? E, na inversa, se só houvesse um partido à direita, passaria a haver unicamente governos de direita, mesmo com maiorias parlamentares à esquerda, pois aquele seria sempre provavelmente o mais votado? Absurdo! Obviamente um absurdo.
Por outro lado, tem-se falado muito de 2009, para mostrar a “bondade” de se ter deixado Sócrates governar em minoria – até cair em 2011. Ora, imaginemos que Manuela Ferreira Leite e Paulo Portas tinham tido um pouco mais nessas eleições: se, em 2009, PSD e CDS tivessem somado 116 deputados, alguém acredita que não teriam formado governo, mesmo tendo sido Sócrates mais votado? Ou, em 2011, como Portas imaginou no debate com Passos Coelho, se PSD e CDS, somados, alcançassem maioria parlamentar e o CDS fosse o mais votado dos dois, seria Portas o primeiro-ministro, mesmo que Sócrates fosse o líder do partido mais votado: por outras palavras, o governo seria da maioria parlamentar e, dentro desta, do mais votado. O CDS sempre pensou assim – e pensou bem, porque as regras são efectivamente assim.
Outra questão ainda, mais de concepção de sistema político: pode impor-se a obrigação “constitucional” de um Governo contra uma maioria legislativa? É aceitável, ou sequer desejável, defender a formação de um governo ou a sua manutenção contra uma maioria legislativa claramente oposta e até hostil? Esta tornou-se, na verdade, a condição anunciada de governo à direita nesta legislatura. Choca-me, aliás, que isso não recebesse o menor comentário ou reacção. Nem falo da extrema dificuldade, senão impossibilidade, de aprovar o OE 2016. Tão-pouco falo, partindo do princípio de que a PàF tem pensamento nestas matérias, do logo propagandeado propósito da maioria de esquerda de fazer avançar as suas leis em matéria de aborto e questões LGBTI. Falo de outras matérias, como a possibilidade de a esquerda, em maioria, vir a rever as leis do IRS, reverter o Código do IRC, mexer no núcleo das leis do arrendamento, avançar com a regionalização ou outras leis autárquicas, etc. Ao mesmo tempo, as propostas de leis do governo PàF seriam, regra geral, reprovadas. Um governo assim poderia lá estar? A fazer o quê? Expliquem-me por favor: a fazer o quê?
6. O problema de 4 de Outubro não é a PàF ter sido a força mais votada – a rã não é surda. O problema das eleições de 4 de Outubro é PSD e CDS não terem obtido maioria parlamentar – a rã foi amputada e ficou perneta.