O meu amigo José Manuel Fernandes, publisher do «Observador», por cujo acolhimento nas suas páginas estou grato, interpelou-me no seu último artigo acerca do que eu tinha escrito sobre o impasse trágico-cómico do Brexit, assumindo uma posição oposta à minha. Confesso que não é o primeiro a discordar de mim, como mostram as minhas caixas de comentários, e não tenho impressão que a minha opinião seja maioritária entre as pessoas que têm opinado entre nós sobre o Brexit desde 2016.
Deve-se isto a duas razões opostas mas que, na prática, acabam por convergir. Uma é a sobrevivência histórica, entre nós, de uma cultura de admiração pela Inglaterra enquanto nossa parceira na mais antiga aliança diplomática do mundo, a qual garantiu – até data mais recente do que possa parecer – a independência de Portugal em relação à Espanha assim como a longa duração do império colonial português. No oposto da tradição anglófila, a outra razão de simpatia pelo Brexit vem da extrema-esquerda e da extrema-direita internacionais, incluindo as de cá, que vêem na política da Inglaterra um sério golpe na União Europeia.
Esta última atitude tem motivações ideológicas mas corresponde sobretudo ao desejo de destruir o maior bloco económico do mundo – maior que os Estados Unidos, com um PIB superior a 15 mil milhões de euros – e, simultaneamente, com os padrões mais altos de equidade social, o «estado de bem-estar» mais desenvolvido e as mais avançadas políticas de protecção ambiental. De todas as iniciativas que a UE desenvolveu nas últimas décadas, a moeda única constitui a mais ambiciosa e unificadora do bloco europeu. Já lá vão quase 20 anos e o euro resistiu a tudo, incluindo a crise oriunda dos EUA. É por tudo isso que o desmantelamento da UE constitui um objectivo evidente de todos os regimes e movimentos autoritários, sejam pretensamente de direita ou de esquerda. Por isso, eu lamentaria sinceramente que a Inglaterra se retirasse da União, apesar de se saber desde sempre que ela tem «sentimentos mistos» em relação ao Continente. Quanto à UE, a única vantagem poderia vir a ter seria a adesão ao «euro» por parte dos países que ainda não aderiram devido aos laços comerciais que têm com as ilhas britânicas e que ficariam a perder se estas saíssem da UE. É de notar que Portugal começou a ser cada vez menos dependente do mercado britânico, em favor da Espanha e do resto do continente, conforme a geografia impunha, a partir do dia em que aderimos à UE para proteger a nossa débil democracia!
Inversamente, é devido às razões de fundo da construção europeia, iniciada e discutida em profundidade há mais de 60 anos, que a UE não podia em caso algum facilitar a saída do Reino Unido nem tão pouco interferir na sua vida política interna. Em contrapartida, a classe política inglesa não fazia a mínima ideia do grau de «soberanismo» que continuava a dominar a antiga grande potência mundial até à iniciativa despropositada de referendar a permanência do país na UE de modo – pensava o antigo primeiro-ministro Cameron – a marginalizar os populistas irresponsáveis, como Farage, Boris Johnson e quejandos, que ameaçavam o governo conservador com gritos de ódio à Europa unida.
O governo conservador ficou ainda mais débil quando Cameron fugiu às suas responsabilidades e cedeu o lugar a uma senhora que votara contra a saída da UE e nada fez, durante quase três anos de governação, para organizar a eventual saída que a União nunca desejou mas também não podia impedir. Na realidade, a ameaça do Brexit parece não ter feito mais do que consolidar a UE, o que demonstra que as veleidades populistas e soberanistas de vários governos europeus – desde a Itália ao grupo de Visegrado – são mais «quantitativas» do que «qualitativas»… Na verdade, o mesmo se passa com governos hipócritas como o grego e o português com a sua caranguejola de anti-europeístas e anti-capitalistas…
O problema é que a Grã-Bretanha, em particular a sua classe política, tem uma visão puramente económica da UE. Pior: ela possui uma concepção economicista do mundo desde o tempo dos «economistas políticos» do século XVIII. Ora, a verdade é que já o «Mercado Comum» – a única coisa que sempre atraiu a Grã-Bretanha – era pensado com vista à manutenção da paz na Europa após a 2.ª Guerra Mundial. Daí a necessária união entre vencedores e vencidos a fim de ultrapassar as guerras na Europa ocidental e, depois da queda do comunismo, integrar os antigos satélites da Rússia na União. Paradoxalmente, a Grã-Bretanha, que chegou a estar só na luta pela liberdade na Europa durante a 2.ª Guerra Mundial, permanece obnubilada pelo soberanismo mercantil. Oxalá se dê conta disso a tempo!