A discussão nacional sobre as acusações de Kathryn Mayorga a Cristiano Ronaldo tem sido extraordinária. Até ver, já justificou que o director de informação da RTP se demitisse, o que só pode ser devidamente apreciado se tivermos em conta que o fogo de Pedrogão-Grande, em que morreram mais de sessenta pessoas, terá demorado o dobro do tempo a provocar a primeira demissão.

Este não é um daqueles casos em que toda a gente tem opinião: é antes um caso em que toda a gente parece ter de ter opinião. E talvez por isso, é também um caso em que vigora, com todo o rigor, a regra de que nunca devemos deixar um facto estragar uma boa opinião. Os mais cautelosos ainda notam, antes de opinar, não estarem certos sobre o que se passou há nove anos, entre Ronaldo e a sua acusadora. Mas para a maior parte das pessoas, a dificuldade não é saber o que aconteceu em 2009, mas perceber o que se passa agora: é que demasiada gente parece ter tomado a expressão “Ronaldo acusado” como se o futebolista tivesse sido formalmente acusado por uma autoridade judiciária, na sequência de um inquérito policial, e não, como é o caso, apenas denunciado por outra pessoa. Mesmo os documentos publicados pelo Der Spiegel foram entretanto contestados pelo advogado de Ronaldo.

Tem isto importância? Para a discussão, parece não ter. O que importa aos portugueses, depois de meses a seguir a série americana do MeToo, é a oportunidade de finalmente discutirem estas coisas em termos nacionais, e percebe-se porquê. O fim da menoridade em que as mulheres tradicionalmente foram mantidas é um dos grandes factos sociais do nosso tempo. A igualdade perante a lei foi fundamental, mas as feministas, a este respeito, têm razão: é preciso que os comportamentos e as atitudes mudem.

Como este é verdadeiramente o ponto, a discussão sobre o caso de Ronaldo tem-se situado a um nível abstracto. No fundo, trata-se de medir a importância que cada um está preparado a dar a um crime sexual cometido por um homem sobre uma mulher, e não de determinar se Ronaldo é responsável ou não por qualquer acto que possa constituir crime. Mas o uso de casos concretos como este para estimular o debate, sendo talvez inevitável, não é necessariamente favorável à causa. Os mais virtuosos, do ponto de vista dito feminista, parecem ser aqueles que se declaram disponíveis para acreditar numa mulher a partir do momento em que ela aponte o dedo a um homem, independentemente de quaisquer provas. O custo emocional da acusação feita em público seria garantia suficiente.

Vimos um dos primeiros efeitos deste regime de dispensa de prova no caso do juiz do Supremo Tribunal dos Estados Unidos, Brett Kavanaugh. Os patronos de Kavanaugh no Congresso americano não negaram que Christine Ford, a mulher que o acusava, tivesse sido abusada há 36 anos, uma vez que ela o dizia e contradizer uma “sobrevivente” é hoje o maior dos sacrilégios na América. Mas foi-lhes possível negarem-se a reconhecer a culpa de Kavanaugh, já que não haveria provas de que tivesse sido ele o abusador. A “agressão sexual sem agressor” (ou, no caso de estupro consumado, a “violação sem violador”), eis o eventual resultado salomónico das acusações de cariz sexual num ambiente de sentimentos exaltados, mas fora do devido controle judicial.

O assédio sexual e a violação são crimes abjectos. Mas nem por isso podem deixar de ser factos provados, e não apenas “alegações”. É verdade: nem sempre a sua prova é fácil. Mas se constituirmos um regime especial, em que a emoção da queixa permitisse prescindir do apuramento judicial dos factos, não estaríamos a servir as vítimas, mas apenas a levantar dúvidas e a romper o consenso social sobre a condenação desse tipo de crime.

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