Estive a ler sobre a proibição da abaya nas escolas públicas francesas e a discussão que tal está a causar. É uma proibição com a qual concordo e, ao contrário do que afirmou Henrique Raposo, no Expresso, não promove nem o acesso ao espaço público nem a integração seja no que for. Esta proibição, tal como aconteceu com a dos símbolos religiosos ostensivos nas escolas públicas, em 2004, favorecerá a integração e o rendimento das alunas – os dados estão disponíveis para consulta. Nem sequer é surpreendente. Basta pensar. Uma miúda de cabeça tapada, de vestido até aos pés por cima da roupa, usa o veú e a abaya como elementos diferenciadores, cria-se uma separação, há «elas» e «nós», ora o convívio também decorre da sensação de proximidade, das afinidades. Fazer parte de um grupo de colegas, sentir-se parte de uma escola, é importante para crianças e adolescentes e é natural que o sentimento de integração reverta positivamente no rendimento escolar.
E muito me choca que a esquerda, que diz pugnar pelos direitos das mulheres, se alinhe com a submissão da mulher ao preceito religioso extremista e patriarcal no espaço neutro e secular do ensino público, o único lugar onde, para muitas crianças e adolescentes, se pode pensar e ser aquilo que não se conhece ou não é permitido ser e conhecer no espaço familiar ou social de origem. Inclusivamente o lugar social da mulher. Como Wittgenstein afirmou, não se pode ser aquilo que não se pode pensar.
A deputada Sandrine Rosseau, dos Verdes, uma figura dita de proa no combate à violência sexual, ecofeminista, considera esta decisão do ministro da Educação «uma forma de controlo social do corpo das raparigas e das mulheres», esquecendo, muito convenientemente, a quem servem os nigab, burca e chador. É uma declaração vergonhosa. Afinal, Masha Amini foi só uma bandeira? Não. Foi uma mulher jovem, morta criminosamente em nome do modo de vida ultrajante. E quem já viu meninas de 10 anos constritas por lenços onde nem um cabelo assoma, de abaya por cima da roupa e véu a tapar-lhes a boca, não fica indiferente.
Nem burca nem higab nem nigab nem chador.
Já o disse, mas não me importo de repetir: o pluralismo democrático é tão cultural como religioso. O cimento que permite a união na diferença é a Lei, tanto quanto as interdependências sociais e comerciais. Assim, a conduta exigida pela Lei não pode ser determinada pela conduta exigida pelas diferentes religiões. Ainda que os Estados democráticos sejam permeáveis à religião, têm de garantir a liberdade para os que praticam uma religião, da mesma forma que têm de garantir a liberdade para os que praticam outra, e para os que não praticam qualquer religião, por muito que este exercício se revele exigente e o seu equilíbrio precário.
A relação entre a democracia e a religião tem de ser pensada. Ou melhor, tem de ser repensada, já que a própria religião entrou no basismo partidário e pressiona os poderes políticos. Mais. A cidadania é uma ética. E a sua base é tanto religiosa como secular.
E, na verdade, a neutralidade religiosa, que é institucionalmente desejável nas democracias, pode ser igualmente indesejável quando rasga os direitos humanos. Entre eles, os direitos da mulher.