Nestes três meses Vladimir Putin foi claramente derrotado nos seus objetivos estratégicos iniciais. Perdeu a batalha de Kiev e falhou no objetivo de fazer cair Zelensky e, com ele, um Estado ucraniano independente. No discurso de 23 de fevereiro em que anunciou a “operação militar especial” Putin afirmou que queria “desnazificar e desmilitarizar” a Ucrânia. Ora, ser nazi na retórica do Kremlin é sinónimo de opor-se aos objetivos do regime russo. Portanto, Putin lançou quase 200.000 soldados contra a Ucrânia para garantir que o país vizinho ficaria à sua mercê e era reduzido ao estatuto de Estado-satélite, disposto, inclusive, a ceder às exigências territoriais russas. O máximo que Putin conseguiu foi uma vitória pírrica em Mariupol que arrasou para a “libertar”. Um futuro que pode estar reservado a outras cidades que a Ucrânia ainda controla no Donbas, como Severdonetsk. Apesar disso, uma sondagem, com as limitações inevitáveis num país em guerra, mostrava 82% dos ucranianos a defenderem a resistência armada e a rejeitarem um compromisso que ceda território à Rússia, mesmo que isso leve ao prolongar do conflito com os riscos que tal acarreta para eles. Pode ser que esses números mudem, mas não há sinais disso, e, pelo contrário, a liderança ucraniana parece determinada a não ceder e a resistir.

Putin, fã da história ou fã de mitos?

É estranho que Putin, que diz ser um leitor apaixonado de história, tenha cometido este erro. Como historiador eu serei o último a criticar fãs da história. Desconfio é que Putin, na verdade, é um grande fã da sua própria propaganda, que oferece uma versão mitológica ultranacionalista da história da Rússia, em que a Ucrânia não existe. Conhecer a história é importante, mas ainda mais importante é não a confundir com mitos. Por isso, Putin ignorou duas lições fundamentais. Não há melhor receita para acordar mesmo o nacionalismo mais adormecido do que uma invasão estrangeira. Depois, ser uma grande potência e ser omnipotente são coisas muito diferentes. Desde 1945 há uma tendência clara para as invasões por grandes potências não resultarem numa vitória rápida, mas sim numa prolongada resistência armada. Basta lembrar a União Soviética no Afeganistão ou os EUA no Iraque.

Um bom capítulo da história do Ocidente

Putin também foi derrotado no seu objetivo estratégico de demonstrar a impotência do Ocidente. Um dos grandes objetivos da invasão russa era, efetivamente, provar que os EUA e a Europa não passavam de tigres de papel. Também aí o génio estratégico do Kremlin saiu furado. Os EUA e a Europa cooperaram eficazmente no quadro de uma aliança mais ampla com dezenas de países para sancionar a Rússia de uma forma nunca vista para uma economia desta dimensão, e para garantir à Ucrânia o dinheiro, as armas, as informações, o apoio logístico de que precisavam para uma resistência mais eficaz à invasão.

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Putin foi claramente derrotado no objetivo de combater o alargamento da NATO. Quando Daniel Oliveira legitimamente pergunta porque devemos ficar satisfeitos com a vontade clara de adesão da Suécia e da Finlândia, não tenho grandes dúvidas em responder. São países com um forte compromisso com valores democráticos e com relevantes capacidades militares. E essa opção confirma que Portugal tem feito a aposta certa na sua política de alianças, que lhe permite beneficiar da melhor garantia de segurança do Mundo. Por preocupante que seja a extrema polarização partidária nos EUA e por desejável que seja uma Europa mais capaz de se defender, ninguém de bom senso improvisa uma nova organização militar com uma guerra às portas. A Turquia pode dificultar a concretização desta viragem na cultura estratégica sueca e finlandesa, mas não vejo que a possa inverter. Este não é o fim da história complexa do Ocidente, mas é, para já, um bom capítulo.

Novos perigos e o caminho para a paz

Infelizmente, é cedo para declarar vitória face ao imperialismo militarista russo. Estamos a entrar na fase da prova de resistência. Estamos longe do regresso a uma economia global normal. Estamos todos a pagar um preço económico muito elevado por esta guerra. E países mais vulneráveis no Médio Oriente e em África podem ser empurrados – em particular pelo bloqueio russo do Mar Negro – para a fome e a violência, criando novas crises e conflitos.

Estamos longe de ter um caminho claro para uma paz negociada, e a guerra continua na Ucrânia, com o seu cortejo diário de mortes trágicas. O custo muito elevado que a Rússia foi forçada a pagar por esta aventura imperialista é indispensável para se dissuadir novas agressões semelhantes, por exemplo, por parte da China relativamente a Taiwan. Mas estarão os ucranianos dispostos a continuar a pagar o preço da resistência? Estaremos nós nos países ocidentais dispostos a continuar a pagar o preço de a apoiar? Espero que sim, mas não estou seguro disso.

Podemos estar a entrar numa fase mais perigosa da guerra, em que as partes, confrontadas com uma erosão crescente de tropas e material, desejosas de vitórias rápidas, podem escalar de forma perigosa. Se Putin sentir a sua legitimação como homem-forte em perigo por contraofensivas ucranianas pode usar armas químicas ou outras. Outra possibilidade é um impasse armado, uma guerra de trincheiras, mas com o bombardeamento continuado de zonas civis e a continuação do bloqueio naval a Odessa. Dizê-lo não é defender o apaziguamento ou uma saída airosa para o Kremlin, é apontar com realismo para os riscos que todos estamos a correr para Putin se poder manter no poder, em particular os civis ucranianos, e os soldados ucranianos e russos.

Uma coisa é certa, se a Rússia está hoje a pressionar a Ucrânia para um regresso à mesa das negociações é porque não conseguiu quebrar a sua resistência pela força. Neste quadro as armas e as sanções ocidentais não impedem as negociações. Pelo contrário, elas criam as condições para que verdadeiras negociações de paz possam ter lugar numa situação de maior equilíbrio entre as partes.