Na linha da crónica anterior e prosseguindo nas leituras de verão, recomendo hoje o número de Junho a Agosto da revista New Philosopher que aborda, de uma forma particularmente feliz, diversas perspetivas à volta da noção de incerteza, e que inspiraram, hoc sensu, a crónica de hoje.

No plano filosófico, vários foram os pensadores que se dedicaram a refletir sobre a relação do homem com a incerteza que acompanha sempre o tempo futuro. No século XX, de cujo pensamento ainda somos tributários, ganharam destaque os chamados “existencialistas”, os quais, a despeito de diferentes abordagens, tinham em comum a preocupação com a angústia que nasce da incerteza, não apenas em relação ao devir e ao Futuro, mas também a que está associada às decisões humanas.

Depois de dois séculos em que a liberdade foi apresentada, no plano político, mas também na condução pessoal e moral, apenas com uma dimensão redentora, é com os existencialistas que somos convocados a pensar, de uma forma contemporânea, no fardo que implica a “decisão”, e na vertigem paralisante que leva a que muitos caminhem, por inércia, “rumo ao precipício”.

Num mundo globalizado, mas ao mesmo tempo profundamente espartilhado, em que o ruído e a cacofonia das linguagens babélicas associadas à evolução acelerada provocada pela tecnologia e pelas mudanças disruptivas que ela nos patrocina criaram uma enorme confusão entre o que é conhecimento e o que é opinião, é cada vez mais difícil discernir o que é certo ou errado para a vida de cada um. Perante novas complexidades, em que é árdua a tarefa de recolha de todos os elementos necessários para a tomada de decisão, consolida-se a convicção de que não podemos confiar que as impressões que recolhemos sobre o mundo que nos rodeia correspondem a uma certa noção fidedigna do que é a realidade, deixando o comum dos mortais – mas não só – perplexo, desamparado e profundamente angustiado, com uma forte sensação de impotência sobre o que lhes escapa.

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Num contexto em que a memória digital está a sobrepor-se à memória humana, em que a angústia de existir – e decidir – conduz grande parte da população à alienação e à demissão, a liberdade fica comprometida e à mercê dos que dominam a manipulação e a projeção do medo.

A pandemia da Covid-19 veio precisamente comprovar que a maioria dos cidadãos abdicou de decidir, bloqueado que esteve pela dificuldade em recolher informação, e discernir entre o que é conhecimento e o que deveria ficar no espaço da opinião ou da decisão individual. Foi evidente a pressão colocada junto dos poderes políticos para decidirem por todos, num espaço de sonegação do exercício das liberdades individuais – leia-se, substituindo-se os poderes públicos, ao espaço de decisão individual –, submetendo-se ao medo e à necessidade de o afastar. Lendo à distância o que escrevi, em conjunto com o André Azevedo Alves, há mais de dois anos, por aqui no Observador, a propósito da pandemia (“O COVID-19 e a nova normalidade: um apelo à ponderação”; “O vírus não deve dominar as nossas mentes”; “O vírus, a morte e a cegueira”; “O vírus e o fardo da liberdade”) conclui-se que estamos hoje a pagar o preço de más decisões que nos conduziram até às dificuldades com que hoje nos defrontamos, pelas razões que acima apresento. Se hoje temos um quadro geopolítico profundamente desagregado, com guerra, problemas graves em matéria energética, inflação e distorções graves nas cadeias logísticas e de produção, destruição de sistemas de saúde e mortalidade agravada, tal deve-se em boa medida à forma como, durante dois anos, boa parte do mundo decidiu que uma pandemia justificava decisões sem sentido de equilíbrio, proporcionalidade e ponderação.

O resultado é que, passados mais de dois anos, vivemos hoje não só num mundo “mais volátil, mais incerto, mais complexo e mais ambíguo” (no tal mundo “VUCA” que a linguagem de gestão adotou como clichê), mas sobretudo, menos livre, onde os cidadãos comuns encaram a tomada de decisões sobre assuntos relevantes para a sua vida como um fardo, alienando-se e transferindo a responsabilidade e o arbítrio para Estados cada vez mais totalitários na sua forma de agir.

É por isso fundamental resgatar para as pessoas comuns a vontade de decidir, e melhorar as literacias necessárias para permitir atenuar a angústia da decisão num mundo que se apresenta por estes dias como particularmente incerto. Tendo presente, em qualquer caso, e como dizia C. S. Lewis, que “a vida humana se posiciona em permanência à beira do precipício”, e que “a incerteza extrema sempre foi o estado natural da humanidade – algo que só a convergência de circunstâncias ocasionais nos permitiu esquecer, por um curto período de tempo”.