Aconteça o que acontecer na noite eleitoral americana, podemos ter a certeza de que amanhã os comentadores portugueses não vão trabalhar. Seja qual for o resultado, 4.ª feira vão fazer gazeta. Se vencer Kamala Harris, é feriado; se vencer Donald Trump, não vão precisar de fazer nada, basta republicarem as análises de maus agouros que escreveram depois da vitória de Trump, em 2016. Nos dias seguintes à eleição de Trump, redigiram-se as mais pungentes profecias de fim do mundo desde que alguém traduziu uma espécie de hieróglifos Maia e concluiu que aquela civilização da América Central apontara o fim dos tempos para dia 21 de Dezembro de 2012.
A única diferença é que, enquanto os Maia já não estão cá para serem ridicularizados (bem podem agradecer a Hernán Cortés ter-lhes poupado à zombaria), os áugures políticos continuam a fornecer-nos os mesmos lúcidos e informados oráculos. E não faltam exemplos de presságios falhados nessa altura. Numa rápida pesquisa aos jornais de então, encontramos vários prognósticos sombrios sobre a presidência de Donald Trump.
Miguel Sousa Tavares: “Convicto de que tudo se resolve rapidamente e à bomba, irá potenciar o terrorismo, tal como fez Bush, que lançou uma guerra inútil da qual nasceu o Daesh e consentiu o 11/9 em Manhattan. E, por mera vaidade, é mesmo provável que queira jogar ao “Diplomacy” com Putin”. (Não sei a que jogaram os dois, se poker se ao bate-pé, mas que Trump manteve Putin distraído, lá isso manteve: depois de ter invadido a Crimeia no mandato de Obama, Putin esteve sossegado durante o mandato de Trump e invadiu a Ucrânia no mandato de Biden. E, curiosamente, Trump foi dos poucos presidentes americanos a não declarar nenhuma guerra).
Clara Ferreira Alves: “Vai ser o Presidente com o maior poder concedido em democracia para governar sem atilhos. A devastadora derrota dos democratas tem consequências. Quem vai investigar ou escrutinar Trump? Legalmente, ninguém. (Por acaso, havia atilhos. Por exemplo, foi investigado pelo FBI. Aliás, o FBI esteve muito ocupado durante a presidência Trump: em conluio com o Facebook ajudou a suprimir uma história desagradável para Biden, o candidato adversário de Trump, que era, recorde-se, Presidente em exercício. Pode ser considerado abuso de poder, mas de encaixe).
Pedro Santos Guerreiro: “Devemos estar preparados para o pior: o desprezo pela União Europeia, a partilha de território de poder com a Rússia, a agressão comercial à China, a secundarização da NATO”. (Também não fez nada disso).
Nicolau Santos, na Newsletter do Expresso do dia de tomada de posse: “Hoje toma posse como 45.º Presidente dos Estados Unidos o multimilionário Donald Trump. E se cumprir tudo o que já prometeu até agora, iniciamos hoje mesmo a contagem decrescente para a III Guerra Mundial”. (Ainda não principiou, o que significa que Nicolau Santos pode voltar a avisar: “Malta, vai começar a 2.ª 3.ª Guerra!)
Ferreira Fernandes, no DN: “Lembremo-nos é do que fazíamos a 20 de janeiro de 2017, do dia que os vindouros nos irão pedir memórias ou até contas. O dia em que a América deixou de ser a nossa aliada e, até (se quem exercer o poder que lhe foi dado a partir de amanhã, o puder fazer à sua maneira), deixou de ser um país decente”. (Da última vez que vi, a América continua a ser nossa aliada).
Rui Tavares, Público: “Leio que alguma direita portuguesa se apresenta enfadada com as comparações entre Trump e Hitler. Respeitemos então esse desconforto. Comecemos antes por uma razão para gostar do novo presidente americano, pelo menos para certa esquerda mais numerosa do que se pensa: uma comparação entre Trump e Estaline”.
(Trump é igual a Hitler e Estaline, dois tiranos homicidas que só largaram o poder quando morreram. Confere).
A questão não é só o piroso tom melodramático, compreensível para quem julga estar mesmo no olho do furacão da história. Nem o facto de se terem enganado de forma tão redondinha, e o mundo, impavidamente, continuar a rodar sobre si e à volta do Sol. É, ao que tudo indica, prepararem-se para repetir tudo. Uma espécie de Novo Juízo Final – Agora a Sério! O facto de Trump ter sido Presidente e nenhum dos vaticínios se ter materializado não os amedronta. Não, não. Desta vez é que vai ser! Como sportinguista, conheço bem o poder da crença irracional num futuro radioso, renovada ano a ano, mas é a primeira vez que observo o uso da volúpia reciclada para ansiar pelo armagedão.
Para ser justo, este género de milenarismo recauchutado nem é dos mais absurdos. O televangelista americano Harold Camping vaticinou o fim do mundo para o dia 6 de Setembro de 1994. Quando tal não sucedeu, corrigiu a previsão para 29 do mesmo mês e depois para 2 de Outubro. Depois, previu a 2.ª vinda de Cristo para 21 de Maio de 2011, seguida de juízo final a 21 de Outubro desse ano. Como as sibilas de Trump, parecia que andava às apalpadelas, em busca do fim. Não é bem escatologia, é pescatologia: vão lançando o anzol, a ver se é desta que o grande peixe do apocalipse morde.
O problema da falta de credibilidade de Trump é que, pelos vistos, é contagiosa.