Foi numa tarde qualquer dos anos 90 em Paris. O céu estava plúmbeo e opressivo. Mas também é verdade que em Paris o tempo assim possui, às vezes, uma estranha beleza. Estava numa esplanada a conversar com Fernando Gil. E ele, apontando para o céu, notou como é magnífica a expressão portuguesa “Arma-se uma tempestade”.
Desde esse dia, não consigo pensar na expressão sem me maravilhar. A natureza vê-se atribuída predicados bélicos, e predicados bélicos que supõem preparativos prévios à violência que se vai desencadear. Como se houvesse um plano a desenrolar-se face aos nossos olhos, fero e inexorável. Os humanos devem preparar-se para o pior. O céu foi tomado por uma “turba canora e belicosa” disposta a tudo para nos infligir sofrimento e dor.
Várias tempestades se armaram, no céu e na terra, desde essa longínqua tarde parisiense, mas aquela que eclodiu aquando da invasão russa da Ucrânia foi certamente a maior delas. E é uma tempestade que traz cada vez mais consigo a ameaça de novas tempestades nunca vistas, sob todos os céus, em todas as terras. Mais uma vez, os humanos devem estar preparados para o que aí vem, embora, sem dúvida, quase nada saibamos do que é estar preparado para estas coisas.
Alguma coisa, no entanto, vamos sabendo. Sabemos, de um saber indubitável, quem armou a tempestade: a Rússia de Putin. Sabemos também quem presta, ou declara a intenção de prestar, a sua colaboração a esse armamento: a Bielorrússia do tirano Lukashenko, a Coreia do Norte do ditador Kim Jong-un e o Irão do Ayatollah Ali Khamenei. E sabemos também que uma pequena legião de amantes da tirania, sempre com a palavra “paz” na boca, aqui e ali nega o óbvio, manifestando a bem conhecida possibilidade do espírito humano que consiste em inverter as relações causais para que estas encaixem no nosso modo costumeiro de ver as coisas.
Por acaso, e alargando um pouco o horizonte, até vamos sabendo mais. As imagens que nos chegaram do desenrolar do vigésimo Congresso do Partido Comunista Chinês, mesmo descontando a remoção do antigo presidente Hu Jintao do lugar que ocupava ao lado de Xi Jinping, lembraram aos mais distraídos os minuciosos rituais dos estados totalitários. E avisaram-nos – há muitos sinais que não enganam, sobretudo quando concordam entre si – que há caminhos da humanidade que devemos fazer todo o possível para não seguir. Não sei se se trata de totalitarismo em boa e devida forma – a forma consagrada pelo nazismo, pela China de Mao e pela União Soviética, pelo menos de Lenine (o seu inventor) a Estaline –, mas é, fora de qualquer dúvida, despotismo do mais extremo, daquele que, na sua essência, por inteiro desconhece qualquer princípio interno de limitação.
A tempestade abateu-se com uma violência inaudita sobre a Ucrânia. Vinha-se armando e sobre ela desabou, como uma “tempestade de aço”, por ar e por terra. E, pela mão de um tirano, arrisca-se a alastrar por esse mundo fora. Como nos prepararmos para o que aí pode vir? Em primeiro lugar, é claro, fazendo o possível e o impossível para que a Ucrânia vença esta guerra. Mas, em segundo lugar, não desviando o nosso olhar, por um só instante, de um facto óbvio que não devemos nunca reduzir à sua dimensão retórica, porque ele é substantivo e crucial: esta é uma guerra que em si resume o conflito entre as democracias e os despotismos.
Os despotismos, vale a pena lembrá-lo, não são meras opções civilizacionais que, à sua maneira, representariam possibilidades legítimas – tão legítimas quanto as democracias – de organização das colectividades humanas. Não são, dito de outra maneira, obras que possamos contemplar pacatamente no grande museu da humanidade contemporânea, como criações artísticas singulares. São, muito ao contrário, aquilo que põe em causa as outras criações e a própria existência do museu como um todo, com a sua diversidade e a sua riqueza. Pô-los no mesmo plano das outras obras é o primeiro passo para ditar a sentença de morte destas últimas, a sua redução a escombros. Não há sofisticação intelectual que permita ocultar esta evidência maciça.
Por isto ser assim é que convém não reduzir o conflito entre as democracias e os despotismos a puras concepções geoestratégicas. E prepararmo-nos para vários desenvolvimentos da presente situação. Entre os quais, é claro, a da tempestade armada na Ucrânia se alargar a outros lugares. Diria mesmo que a percepção clara e nítida da oposição irredutível entre democracias e despotismos é a primeira das condições intelectuais para que a Ucrânia vença a guerra – e também para que ela não se estenda por esse mundo fora. É claro que os fervorosos adeptos do que chamam “paz” – com uma “uma intensidade apaixonada” na qual se afoga a “cerimónia da inocência”, para lembrar o poema célebre de Yeats – verão nestes propósitos mais uma versão do “belicismo” ocidental que tanto censuram. Mas, francamente, a essa gente não vale a pena sequer tentar responder. A sua vocação mental primeira é, sempre foi, a celebração do poder bruto contra a vida das democracias. A conversa, aqui, é impossível.
Tão mais impossível, de resto, quanto o exercício da mentira organizada em sistema se tornou naquelas cabeças uma segunda natureza. A mentira criminosa de que Putin se serve sem excepção prolonga-se no espírito dessa gente sem filtro algum ou preocupação de verosimilhança. Olhando para o céu coberto de nuvens negras garantiriam, sem pestanejar, que o sol brilhava em todo o seu esplendor. E, dando-lhes o devido poder – como aquele de que Putin goza na Rússia, por exemplo –, reservariam a quem apontasse o céu plúmbeo o destino dos russos que protestam contra a ditadura do senhor do Kremlin.