A tranquilidade da consciência é uma coisa muito linda. E, para minha grande surpresa, muitíssimo vulgar. Cheguei a esta última conclusão depois de ter observado com atenção, nestes últimos anos, várias das figuras que passaram pelas comissões parlamentares de inquérito e as que foram constituídas arguidas pelo Ministério Público. Praticamente nenhuma se privou de declarar ostensivamente que se encontrava “de consciência tranquila”.

Estas coisas deixam-me apropriadamente de rastos. E deviam provocar no leitor, ou na leitora, a mesma reacção. É que a minha consciência – e quero crer que a do leitor também, senão o melhor é parar de ler já aqui – oscila incomodamente entre a boa consciência e a má consciência. Não digo freneticamente, com angústias kierkegaardianas, mas, pelo menos, com alguma agitação. O espírito é um ser inquieto, que se mexe, e nem sempre na melhor direcção. Aos 61 anos, penso nas mulheres, nos amigos, na família, no trabalho. Vêm-me à cabeça mulheres perdidas e amigos perdidos. Vêm-me à cabeça mortos. E duvido que tenha sempre agido da melhor maneira com toda essa gente, e, já agora, também comigo. Nalguns casos, tenho a certeza que agi mal, ou que trabalhei mal. Que tenha sido por estupidez ou impulso incontrolável e não propriamente por maldade não me consola. Como não me consola o facto de também me ter apanhado, não poucas vezes, no lugar da vítima. Estas experiências não se anulam umas às outras. Por outras palavras: se alguma comissão de inquérito ou o Ministério Público me viessem interrogar sobre um qualquer assunto, de certeza que a minha resposta começaria por “Eu bem gostava de dizer que estou de consciência tranquila, mas…”.

Não é que eu não ambicione a tranquilidade. Pelo contrário, desejo-a ardentemente, mas entre mim e (por exemplo) Ricardo Salgado ou Luís Filipe Vieira há um abismo. Enfim, há vários, mas percebem o que eu quero dizer. Andarão eles já muito avançados no caminho budista para a iluminação, naquela fase em que a sua alma é como um lago parado num dia sem vento? Ou andarão próximos da ataraxia, que as escolas helenísticas recomendavam? Aí, menos ambiciosa, a tranquilidade é algo pelo qual se luta, como o filósofo estóico Séneca lutava. Uma luta particularmente difícil no caso dele, que sofria da paixão devoradora pelo dinheiro (morreu riquíssimo) e, ao que consta, ajudou o seu discípulo Nero a matar o meio-irmão, Britânico, e a mãe, Agripina, antes do discípulo o forçar a suicidar-se, coisa que só conseguiu depois de algumas tentativas malsucedidas. Não é Sócrates ou Catão (que também teve alguns problemas no capítulo, é verdade) quem quer. Mas talvez as actuais pessoas de consciência tranquila também passem por combates (menos trágicos, espero) assim.

O humilhante problema é, como disse, serem muitas e estarem em todo o lado. Se fossem só os das comissões de inquérito e coisas afins, o ego sofria menos e a inveja era um mau sentimento passageiro. Mas as pessoas de consciência tranquila aparecem aos saltos, vindas de onde menos se espera, nos partidos, nas televisões, nos jornais. Tomemos um exemplo qualquer, como a actual situação em Cuba. Face à repressão organizada pela ditadura cubana, muito patente nestes últimos dias, o PCP exorbitou de tranquilidade de consciência, defendendo o regime e atacando os hipócritas “que, expressando uma enganadora preocupação com o povo cubano, ocultam deliberadamente a política de ingerência e agressão dos EUA”. O PC, que adopta o lema leninista da “análise concreta de uma situação concreta”, procede à análise introduzindo uma variante budista: a sua tranquilidade de consciência, que lhe fecha os olhos aos sofrimentos e à miséria dos seres humanos privados de liberdade, é como o tal lago parado num dia sem vento. Numa linguagem que eles percebem, a transformação quantitativa dá lugar a um salto qualitativo: a partir de um certo grau, a tranquilidade da consciência torna-se na própria iluminação.

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Mas não é só o PCP que é admirável nestas coisas. O Bloco de Esquerda também o é. Reconhecendo a legitimidade dos protestos contra a má gestão da pandemia e a crise alimentar – mas sem se alongar sobre a natureza ditatorial do regime -, o esquerda.net dá ampla voz ao presidente cubano, Díaz-Canel, que vê a origem de todos os males no “bloqueio dos EUA” e naqueles que, na ilha, o apoiam. O Bloco parece subscrever, de acordo com a excelente dialéctica marxista, a tese segundo a qual um embargo, por um salto qualitativo, se transforma num bloqueio. “Bloqueio”, é verdade, é mais visual e surte melhor efeito. Nunca tinha pensado nisto, mas a verdade é que a tranquilidade da consciência aparentemente propicia os devaneios dialécticos.

E o jornal Público – que muito se empenha em formar consciências tranquilas – não fica atrás. Ainda ontem, um artigo – não uma coluna de opinião, um artigo – de um jornalista da casa bate forte e feio nos EUA e nos belicosos “cubanos de Miami”. É uma delícia. A dialéctica marxista acima referida volta ao ataque, embora com falhas – o movimento do espírito – que a experiência, sem dúvida, corrigirá no futuro: “embargo” alterna com “bloqueio”. O lago parado num dia sem vento chegará mais tarde ou mais cedo – mais cedo do que mais tarde.

Tanta tranquilidade de consciência é, de facto, opressiva. E uma pessoa põe-se a imaginar artimanhas para escapar ao vexame da imensa sabedoria que nos rodeia de todos os lados. As artimanhas tomam a forma de perguntas. Pode uma consciência ser tranquila? Não será mais correcto dizer que a consciência não foi feita para estar tranquila? Uma consciência tranquila não será uma consciência falsa? Não será a negação da realidade exterior coisa própria de uma consciência vazia? Não precisará a consciência tranquila, para se realizar plenamente, do auxílio maciço da falta de memória? Não será a consciência tranquila, na sua acabada perfeição, uma forma de inconsciência?

Mas estas perguntas são, repito, apenas truques para escapar imaginariamente à humilhação a que as consciências tranquilas diariamente me submetem. Hesito sempre em dirigir-me directamente “ao leitor”, mas já o fiz no princípio deste artigo e reincido agora no fim: o leitor, ou a leitora, não partilha os meus sentimentos?