O termo Kulturkampf terá sido cunhado, em 1873, por Rudolf Virchow para descrever o confronto entre Otto von Bismark e a Igreja Católica ao longo da década de 70 do século XIX, em resultado da campanha política empreendida pelo chanceler para sujeitar a Igreja ao controlo estatal e ao processo de secularização do novo império alemão. Remete, na sua origem, para esta luta institucional, mas tem sido utilizado, de modo mais amplo, para descrever disputas pela hegemonia cultural e de valores.

É com este sentido que é usado sempre que as sociedades são marcadas por momentos de polarização e disputa de valores – naquilo que podemos designar como o domínio da metapolítica, i.e., o domínio da linguagem, do discurso e da discussão em torno dos princípios que organizam e tornam percetível o fenómeno político. Não se trata, então, de disputa partidária e discussão de soluções políticas concretas, mas de disputa sobre o conjunto de ideias e valores anteriores que determinam as soluções políticas concretas. É nesta medida que é objeto de reflexão pelas alas mais iliberais do pensamento moderno: à direita, com a direita identitária e, em especial, a Nova Direita Francesa de Alain de Benoist; e, à esquerda, com o pós-modernismo e as teorias críticas, nomeadamente com Alain Badiou.

Uma referência fundamental para as duas alas é Antonio Gramsci, pensador marxista italiano que empreendeu talvez a mais importante revolução no marxismo depois de Lenine, ao ponto de ter aberto o caminho para aquilo que hoje designamos como pós-marxismo. A novidade introduzida por Gramsci prende-se com a importância atribuída à cultura no processo de transformação radical da sociedade capitalista. Como Kate Crehan chama a atenção, “embora para Gramsci os atores principais nessa transformação fossem as classes, as questões da cultura estavam sempre no cerne de qualquer projeto revolucionário, visto que a cultura é a forma como a classe é vivida. E a forma como as pessoas veem o seu mundo e como nele vivem molda necessariamente a sua capacidade para imaginar como pode ele ser mudado e se consideram essas mudanças possíveis ou desejáveis”.

A partir desta ideia, a cultura torna-se o centro da ação política, uma vez que a revolução política depende da mudança cultural. A revolução gramsciana passa, então, por reconfigurar a revolução marxista como luta pela hegemonia a partir de mudanças culturais progressivas. É esta a grande lição que os movimentos, à esquerda e à direita, vão adotar: “para Gramsci, as sociedades não são campos neutros em que diferentes culturas autónomas coexistem tranquilamente; são campos de luta, em que os que defendem conceções do mundo radicalmente opostas lutam pela primazia”, nas palavras de Crehan. E é neste sentido que Gramsci é um dos intelectuais mais influentes do século XX.

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Nesta conceção da política radicam os movimentos que, a partir da década de 60 do século XX, darão origem à chamada New Left norte-americana – que se opunha à velha esquerda, reformista e recetiva às regras do jogo democrático liberal. A nova esquerda, por seu lado, recusou aceitar as regras do jogo e passou a atuar no domínio da luta cultural, procurando uma conquista progressiva dos valores da sociedade norte-americana no caminho para a dominação cultural que conduziria à hegemonia política. E fê-lo, usando os meios académicos e a imposição de um conjunto de valores a gerações sucessivas de estudantes norte-americanos e cumprindo a responsabilidade intelectual com que Gramsci define o papel dos intelectuais. As teorias críticas contemporâneas atuam, portanto, neste plano metapolítico, procurando que a consequência última do seu trabalho seja a formação de ativistas políticos que promoverão a revolução anticapitalista.

Os temas que marcam muito da nossa agenda política são resultado deste trabalho de dominação: multiculturalismo, racismo e pós-colonialismo, feminismo interseccional, teorias queer. E embora isso não tenha conduzido ao objetivo pretendido por Gramsci ou pelos pós-modernistas e teóricos críticos, imprimiu uma dinâmica conflitual de valores que veio dar um especial sentido e agravo à dicotomia entre progressistas e conservadores, i.e., entre os woke (acordados ou despertos) que estão do lado do progresso e os reacionários que recusam os princípios do Bem e da Verdade.

Esta é uma consequência significativa, na medida em que aprofunda a dimensão moral. É claro que a política contém sempre um substrato de moralidade, mas as raízes filosóficas da democracia liberal acentuaram sempre a dimensão racional e pluralista em detrimento de uma visão moralista da política. Não haveria aí espaço para lutas culturais, porque temos um terreno de entendimento comum (e uma narrativa comum) a partir do qual podemos estar politicamente em desacordo até chegarmos a compromisso, na linha de James Madison.

O problema atual é que a moralidade se tornou no cerne dos posicionamentos políticos, dando origem a lutas pela hegemonia cultural, com a discussão dos próprios valores morais da sociedade, sobre o modo como entendemos o bem, o certo, o justo. A polarização atual faz, nesse sentido, ecoar as disputas religiosas históricas, como notam os historiadores Tom Holland e Dominic Sandbrook, no podcast The rest is history sobre culture wars. Pensemos, no que diz respeito ao movimento woke, no puritanismo dos valores, na constante vigilância pelo pensamento certo, na consequente punição dos desviantes.

Esta ressonância religiosa (que Guilherme Valente já assinalou) permite compreender a agressividade das lutas culturais nos Estados Unidos – um fenómeno que James Davison Hunter notou, logo em 1991, com a publicação de Culture Wars: the struggle to define America, e que faz recuperar o sentido inicial de Kulturkampf. Nos últimos trinta anos, o fenómeno agravou-se e, como o autor chama a atenção, pode destruir a democracia: “em assuntos políticos, podemos chegar a compromisso; em assuntos de verdades morais fundamentais, não podemos”. Abre-se, assim, a porta para justificações de violência, em que as culture wars se tornam shooting wars.