“A nossa República e a sua imprensa triunfarão ou cairão juntas. Uma imprensa capaz, desinteressada e solidária, intelectualmente formada para saber e ter coragem para prosseguir o que é certo, contribuirá para a manutenção dessa virtude pública, sem a qual o Governo do povo é uma farsa e uma burla”
Joseph Pulitzer, “Sobre o Jornalismo” (1904)

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Demorou apenas três meses. Três curtos meses para que a tese do conselheiro Noronha de Nascimento sobre a alegada (e óbvia!) tese de corrupção das fontes dos jornalistas pegasse de estaca. Surpreendentemente, os seguidores do dr. Noronha não foram aqueles juízes que acham que o desembargador Neto de Moura é uma vítima dos canalhas dos jornalistas. Foram duas senhoras procuradoras: Fernanda Pêgo, diretora do DIAP de Lisboa, e a sua fiel escudeira chamada Andrea Marques.

E que tese é esta? O ex-presidente do Supremo Tribunal de Justiça explanou-a em 26 páginas mas resume-se em poucas linhas: a única forma de combater as violações do segredo de justiça alegadamente perpetuadas pelos malvados jornalistas é através do crime de corrupção. Como? Fazendo a ligação entre o acesso a uma informação exclusiva e as audiências (logo, receitas) que a mesma informação gera. Para quê? Para estabelecer um nexo de causalidade entre o furo jornalístico e a alegada contrapartida patrimonial.

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É certo que no processo aberto contra os jornalistas Henrique Machado e Carlos Lima foi incluída, por acaso, uma carta anónima com uma descrição muito semelhante ao extraordinário pensamento do dr. Noronha de Nascimento (deve ser um fã secreto das suas ideias) por ordem da dra. Fernanda Pêgo.

Mas não tendo a astúcia intelectual do príncipe das leis, as dras. Pêgo e Marques ficaram-se por uma versão mais básica: os jornalistas teriam corrompido um coordenador da Polícia Judiciária para este lhes passar informação sobre buscas da operação e-toupeira. E com esse indício ordenaram vigilâncias aos jornalistas e quebraram o segredo bancário para vasculhar as contas de Lima. Tudo para descobrir as suas fontes e a alegada prova da corrupção assente em indícios tão fortes, tão fortes que ainda hoje ainda não deram sinais de vida nos autos.

2 Ouvi alguns juízes e procuradores baterem palmas à coragem das procuradoras Pêgo e Marques e defenderam a legalidade das diligências por entenderem que a constante e repetida violação do segredo de justiça é o crime infame que — digo eu — impede a Justiça portuguesa de atingir outros patamares (digamos, europeus) de eficácia, celeridade e até mesmo de credibilidade.

As procuradoras Pêgo e Marques e os seus detratores apenas se esqueceram de vários pormenores da nossa Constituição — que são matérias básicas em democracias como a norte-americana, inglesa ou francesa mas que ainda precisam de ser explicadas em Portugal. Muito sinteticamente:

  • a liberdade de imprensa emana da liberdade de expressão — que, como diz o conselheiro Henriques Gaspar, é uma “super liberdade e um dos direitos mais preciosos do homem, condição sine qua non de uma verdadeira democracia pluralista”.
  • A liberdade de imprensa tem proteção constitucional, tal como o segredo profissional dos jornalistas e o seu seu direito à proteção das fontes (alínea b) do art. 38.º da Constituição);
  • Conclusão: as senhoras procuradoras não podem mandar um polícia vigiar todos os passos de um jornalista para lhes descobrir as fontes de informação. Tal como não podem mandar um polícia colocar uma escuta ambiente num carro para ouvir uma conversa entre um advogado e o seu cliente ou colocar-se atrás da porta de um consultório médico para escutar com a ajuda de um copo as confissões de um paciente ao seu médico. Se querem quebrar um segredo profissional com proteção constitucional, devem dirigir-se a um juiz. O que não fizeram.

Como é óbvio, um jornalista pode ser investigado como qualquer outro cidadão. Ninguém está acima da lei — e muito menos jornalistas que praticam o escrutínio dos poderes públicos. Convém, é que a investigação respeite a Constituição e as regras processuais.

3 Está claro que o sigilo profissional dos jornalistas não é algo que mereça grande respeito da parte das senhoras procuradoras. Tal como admito perfeitamente que muitas agentes da justiça quase que tomarão como insulto que se compare a proteção das fontes ao sigilo profissional de médicos e advogados. O desprezo da Justiça pelo jornalismo é antigo e tem teias de aranha.

Infelizmente, e tal como noutros temas, tal superioridade corporativa ignora a importância do direito à proteção das fontes num jornalismo independente e escrutinador dos poderes públicos — e o seu contributo para o aprofundamento do sistema democrático. Tal com ignoram o contributo histórico que a luta dos jornalistas pela proteção das fontes teve em casos como o Watergate, os Pentagon Papers ou até mais recentemente nos Panamá Papers ou no Luanda Leaks.

Sem o direito dos jornalistas de protegerem as suas fontes, não haveria jornalismo de investigação mas também não haveria jornalismo judiciário que permita informar a Opinião Pública sobre factos com interesse público sobre titulares de cargos políticos ou público perseguidos pela Justiça. Alguém imagina que seria possível ao país nada saber durante anos a fio sobre o que se passava com a Operação Marquês, com os casos BES, BCP, BPN, Face Oculta, Isaltino, Dias Loureiro, Duarte Lima, entre muitos outros?

Para os políticos, mas também para muitos juízes, procuradores e advogados, o que deve imperar é sempre o segredo. Seja o segredo de justiça, sejam outros segredos que os titulares de cargos públicos gostam tanto de invocar para impedir o acesso dos jornalistas às fontes e documentação pública: como os diferentes segredo de Estado, o segredo comercial de empresas públicas ou até mesmo a lei de proteção de dados.

Não é por acaso, aliás, que a lei de acesso aos documentos administrativos — que já foi uma das mais avançadas da Europa — tem sido sucessivamente alterada desde a década de 2000 para impedir que os jornalistas tenham acesso às fontes para escrutinar os sucessivos Governos do PS, PSD e CDS. Aliás, adivinhem quem foram os partidos que aprovaram tais mudanças?

Eis uma das grandes heranças do salazarismo que ainda perdura em Portugal: a lei do segredo. A melhor amiga da corrupção e dos juízes e procuradores que não gostam de ser escrutinados pelos jornalistas.

4Regressando ao caso que levou a este artigo. Outro facto extraordinário na atuação do DIAP de Lisboa é que a mesma rompe com a prática do mesmo departamento sob a liderança da mesma dra. Fernanda Pêgo. Um caso clássico de Dr. Jeckyl e Mr. Hyde do Campus de Justiça.

Sob a liderança da dra. Pêgo, a 10.ª Seção do DIAP de Lisboa arquivou uma série de inquéritos por alegada violação do segredo de justiça com argumentos bastante sólidos e inspirados na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. E que argumentos são esses?

  • Quando a liberdade de expressão e de imprensa chocam com o segredo de justiça, prevalecem as liberdades fundamentais com algumas condições;
  • Que condições são essas? Que a administração da justiça não seja prejudicada com as notícias publicadas e que os factos noticiados tenham relevância pública. Como aconteceu neste caso do processo e-toupeira, visto que as notícias só foram publicadas após o início da realização das buscas;
  • Mesmo quando estão em causa a presunção da inocência e o direito ao bom nome, prevalece igualmente a liberdade de imprensa e o direito ao escrutínio jornalístico dos titulares de cargos públicos e políticos. Porquê? Porque os direitos de responsáveis públicos são naturalmente comprimidos para promover o escrutínio jornalístico que caracteriza qualquer democracia.

Chegado aqui, tenho de ser claro sobre essa mudança operada pela dra. Fernanda Pêgo: é um erro estratégico crasso fazer da comunicação social um inimigo da Justiça. Por duas razões:

  • porque tal rompe com a política de comunicação do Ministério Público desde os anos 90 — altura em que o então procurador-geral Cunha Rodrigues criou um gabinete de imprensa na Procuradoria-Geral da República e inovou na forma de comunicar a Justiça;
  • E porque tal significará, na prática, que o DIAP de Lisboa coloca a alegada violação ao segredo de justiça ao mesmo nível da luta contra o crime económico-financeiro. A Opinião Pública nunca perceberá tal equiparação.

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Em vez de abrir guerras com a comunicação social, ou de se preocupar excessivamente com os lugares de estacionamento do DIAP de Lisboa, a dra. Fernanda Pêgo devia centrar-se em formar magistrados que consigam estar ao nível da história daquele departamento. É que o departamento é uma sombra do passado e do trabalho que foi desenvolvido pela procuradora-geral adjunta Maria José Morgado entre 2007 e 2016.

O que aconteceu à secção de combate à criminalidade económico-financeira? De uma secção que ficou conhecida por investigações importantes (e bem sucedidas) como o caso BCP, caso BPP e de outras igualmente relevantes, passamos para uma espécie de repartição da Justiça onde muita coisa entra mas pouca sai.

Por exemplo, o que se passa com a Operação Tutti Frutti — que nunca mais termina? Como foi possível que a dra. Fernanda Pêgo tivesse deixado que um jovem procurador decidisse promover buscas ao gabinete do ministro das Finanças por causa de uns meros bilhetes de futebol? Ou que mesmo no caso e-toupeira a acusação contra o Benfica não tenha passado da fase de instrução?

E já agora, o que faz e o que pensa o discreto procurador-geral distrital Orlando Romano sobre toda esta balbúrdia que rodeia o DIAP de Lisboa? E a procuradora-geral Lucília Gago — que praticamente não aparece em público desde março? Está a par do que se passa no departamento que liderou fugazmente entre 2016 e 2017 com o seu braço-direito Sérgio Pena? Se as suas diretivas hierárquicas servem para alguma coisa, deve ser para este tipo de situações, não?

Dizia o juiz Alton B. Parker, presidente do Tribunal Superior de Nova Iorque entre 1898 e 1904 (e candidato democrata derrotado nas eleições de 1904 contra Theodore Roosevelt) que o “jornalismo honesto e independente é a força mais poderosa que a civilização moderna desenvolveu. Com todos os seus defeitos (e que criação humana é perfeita?), é indispensável na vida de um povo livre.”

No caso de Portugal, eu diria que o escrutínio jornalístico é indispensável, acima de tudo, a uma Justiça e a um Ministério Público competente, eficiente e merecedor da confiança da Opinião Pública.

PS – A crise pandémica atingiu em Portugal o seu auge, com toda a desgraça sanitária, económica e humana que isso acarreta. A responsabilidade de um Governo que apenas gosta de surfar a onda, sem ter uma visão além do presente e do imediato, é mais do que evidente. O gosto pelo facilitimo e pela popularidade, característica que costuma ser assacada a outras paragens, cegaram o Governo no final do ano passado. A falta de humildade (uma característica política de António Costa) levou à inércia durante a primeira quinzena de Janeiro. Bem sei que os cidadãos também têm a sua quota de responsabilidade por não terem tido os devidos cuidados sanitários. Mas quando os líderes lavam as mãos como Pilatos (como Costa fez no Natal), e ainda dizem que não vale a pena olhar para trás para procurar responsabilidades (haverá algum governante responsável por alguma coisa no Executivo do PS?), é porque não são precisamente aquilo que dizem ser: líderes. Um líder não se desresponsabiliza como o habilidoso Costa faz sempre. Um líder não se esconde atrás daqueles que supostamente lidera. E um líder não tem medo de dizer que errou quando a sua falha de avaliação é por demais evidente. Um líder que tenha estas características, não é um líder. É um politiqueiro.