Desde que começou a guerra que me é impossível, ao ver televisão, não ouvir até ao fim as palavras que os refugiados ucranianos, na sua inenarrável derrelicção, contra o pano de fundo de uma paisagem de escombros e negrura maléfica, nos dizem sobre a sua situação. Não é que não me apeteça mudar de canal – é até quase uma necessidade vital –, mas obrigo-me a assistir a tudo, por uma espécie de respeito pelo sofrimento alheio. Um sofrimento de um tipo particular: não o sofrimento provocado pela doença ou por uma catástrofe natural – não teria a mesma reacção nestes casos –, mas aquele suscitado pela acção perversa de outros seres humanos. E não de nenhum indivíduo anónimo particular, agindo por conta própria – mais uma vez, aqui sentir-me-ia livre para passar a outra coisa –, mas de um indivíduo que mobiliza a acção colectiva de um Estado que concentra toda a sua força na aniquilação de um povo e de uma nação.

E uma coisa que me surpreende muitas vezes nas palavras dessas pessoas, às quais presto toda a atenção que posso, é o acerto na descrição da situação em que elas se viram, de um momento para o outro, mergulhadas. Compreenderam, subitamente, que tudo é possível, e exprimem essa avassaladora compreensão sem ceder por um só instante àquilo que Tocqueville designou um dia por “sensibilidade demonstrativa”, uma exibição convencional e quase ritual da profundidade do sofrimento próprio. Não: são palavras quase sempre breves que dizem da forma mais simples e verídica que se pode imaginar, com plena evidência, o sem-sentido que se apossou da sua vida individual.

Quando, por exemplo, nos falam da inexplicabilidade última do mal. Uma mulher, chegada a Zaporíjia, vinda dos túneis da fábrica de Azovstal (enquanto escrevo, a barbárie ataca em força os que ainda lá ficaram), depois de relatar a destruição pelos russos do exterior do edifício, que, passados dois meses no interior, vira pela primeira vez, perguntava-se sobre a guerra de Putin: “O que é que é preciso ter na cabeça para ter essa ideia?”. É uma questão aparentemente anódina, que qualquer pessoa se pode colocar no mais banal dia-a-dia a propósito de coisas que lhe são indiferentes. Mas ali ela exprime o problema essencial do sem-sentido que a destruição da vida por uma decisão humana nos coloca. O que é que Putin “tem dentro da cabeça” para “ter a ideia” desta guerra? No fundo, é a questão que não paramos de nos colocar, só que ali posta num contexto que a torna a questão evidente, dada a radicalidade da situação na qual se encontra quem faz a pergunta.

A linguagem importa. E a linguagem da verdade é diferente da linguagem da mentira. Compare-se com a linguagem de Putin e Lavrov. Querem “desnazificar” a Ucrânia. Querem “libertar o mundo da influência do Ocidente”. Acusam os judeus de anti-semitismo. O próprio Hitler seria judeu, o que tornaria verosímil que Zelensky fosse nazi. Os exemplos desta linguagem não se contam. Um fio condutor os une: a regra da mentira. A forma da mentira é a única coisa que “têm na cabeça”. Quem mente por regra pode, por definição, dizer tudo. Se amanhã disserem que Abel matou Caim não será surpreendente. Tudo, de facto, é possível.

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Esta atitude supõe um particular descomprometimento da linguagem face à verdade, típica dos regimes autocráticos e totalitários. O mínimo que se pode dizer é que não há aqui vestígio da busca da verdade que encontramos nos diálogos socráticos. O que, bem vistas as coisas, tem talvez uma explicação que, embora marginal, deve ser tida em conta. A literatura e a música (e até, embora muito menos, a pintura) que a Rússia nos legou são para todos fundamentais: não seríamos o que somos sem elas. E a filosofia? Contrariamente ao que se passa com a Alemanha, a Grã-Bretanha, a França, a Itália e os Estados Unidos, para citar os exemplos maiores, ou a Índia e a China, não há qualquer filosofia russa que seja fundamental. Pode-se perfeitamente escrever uma história da filosofia sem mencionar um só autor russo. Não pretendo que a filosofia nos imunize contra a mentira totalitária: há demasiados contra-exemplos para que uma tal proposição seja plausível. Mas certamente que a filosofia – pelo menos aquela que, como na tradição greco-ocidental, se encontra na origem ligada ao nascimento da democracia – nos protege um pouco da mentira, ou pelo menos nos ajuda a dela recuperar.

Deixemos, no entanto, a Rússia de lado e pensemos nos delirantes de cá. O PC, com a sua denúncia do “neo-nazismo” reinante na Ucrânia, partilha, por velho contágio mimético, os hábitos de pensamento de que Putin é, à sua maneira, o herdeiro. Ouvir um comunista é ouvir uma máquina de palavras – a célebre “cassete” – cujo contacto com a realidade é puramente acidental. Até a maníaca repetição de fórmulas sublinha esse lado maquinal. E as máquinas de palavras são indiferentes à verdade. Como são indiferentes à verdade os conspiracionistas sortidos, de esquerda ou de direita, que vêem na invasão da Ucrânia a resposta justa e inevitável a uma urdidura dos Estados Unidos e dos seus velhos aliados britânicos, que arrastariam consigo a União Europeia. Os conspiracionistas são, em geral, analfabetos que confundem uma desconfiança originada pelo que se chama “egoísmo lógico” com uma forma de cepticismo. Dito de outra maneira: recusam-se a acreditar no que o comum acredita porque isso os faz sentir intimamente detentores de uma verdade oculta que não está ao alcance da maioria. Também a estes a mentira os atrai como uma luz inesperada e lhes faz descobrir um mundo de possibilidades infinitas que o banal respeito pela verdade infalivelmente restringiria.

Por tudo isto, vale a pena ouvir com atenção as palavras certas das pessoas simples que nos falam da sua história e do seu sofrimento nestes tempos terríveis. Por respeito para com elas – e também para, graças a elas, nos protegermos do apreço pela mentira que as máquinas de palavras comunistas e o egoísmo lógico dos conspiracionistas manifestam todos os dias.

PS. A propósito do Presidente da Câmara de Setúbal, André Martins – chegado a “Os Verdes” vindo, suponho, do PCP – e da sua relação com o senhor Igor Khashin, suspeito de funcionar como espião russo, colocou-se-me uma questão quase metafísica: o que levará uma pessoa a desejar ser um “verde”? Uma súbita epifania? Um doce enlevo da alma? A descoberta de que só a natureza é comunista? A convicção de que “Os Verdes” possuem um projecto de sociedade que em nenhum outro lugar se encontra? Uma irreprimível dissidência – que horror! – com o PCP? É um tema fascinante, embora ligeiramente bizantino, para o qual prometo ainda descobrir uma boa resposta.