Há políticas e maneiras de fazer política [e formas de noticiar uma coisa e outra] que vêm direitinhas de traços de carácter.

O campesinato e o carácter

Nos últimos estertores do derradeiro governo de Guterres, o ministro do Ambiente, José Sócrates, acompanhado de câmaras de televisão, partiu em missão pelo interior do país, a detectar infracções, a repreender camponeses e a aplicar-lhes coimas por terem feito pequenas represas sem a competente licença. A missão era vã e mesquinha, mas era simbólica, como que a dizer «lembrem-se de mim», o herói justiceiro do governo defunto castigando o camponês nefasto que represou uns hectolitros de água para regar umas couves.

A reportagem passou nos noticiários e não chamou muitas atenções. Mas foi pena, porque era reveladora e importante. Era uma questão de carácter e, como viria a ver-se, enormemente promissora.

[Eu poderia perguntar-me sobre o carácter de quem julgou que essa digressão era digna de reportagem e transmissão em horário nobre. Mas não me pergunto. Seria como interrogar-me sobre as esperanças e angústias dos criados quando novo amo putativo lhes promete que vai erguer uma mansão nova.]

O capital e o carácter

O ministro Pedro Nuno Santos irritou-se muito com o deputado da Iniciativa Liberal, João Cotrim Figueiredo, por este ter acusado o governo a que ele pertence de recusar aos portugueses o direito de escolha na saúde, na educação, na vida, de lhes recusar, em suma, a liberdade.

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A liberdade, segundo Pedro Nuno Santos, «não é (…) termos o Estado português a financiar negócios privados». A liberdade, acha ele, não é o Estado gastar menos e obter melhores resultados na educação e na saúde através de Parcerias Público-Privadas. A liberdade, segundo ele, é estranha à racionalidade económica e à satisfação dos utentes. Liberdade verdadeira é quando o Estado e apenas o Estado «providencia» escola, saúde, vida (a morte também, agora), para depois, e só depois, as pessoas serem livres. A liberdade de Pedro Nuno Santos é a liberdade do credo socialista: para cá o vosso dinheiro todo, porque não só sabemos melhor do que vocês o que se deve fazer com ele, como sabemos melhor do que vocês o que é melhor para vocês que com ele se faça.

O ministro das Infraestruturas Pedro Nuno Santos está irado com a TAP por pagar prémios aos gestores. Então, o ministro, que decerto sabe mais de gestão do que os gestores da TAP, diz que os prémios são inaceitáveis. É um pronunciamento heroico, acham os criados, embora fútil, porque, como o ministro bem sabe, o governo pode pronunciar-se sobre estratégia, mas não sobre a gestão da empresa. Pouco importa. O que importa é que o ministro sabe falar bem para o caldo socialista que cozinha: pobreza, ressentimento e inveja.

O ministro Pedro Nuno Santos está enraivecido com Seixal e Moita que ameaçam atrapalhar-lhe o aeroporto do Montijo, a única infraestrutura com que ainda esperava abrilhantar o mandato. Então, ele, que sabe mais do que as Câmaras sobre o interesse dos munícipes, diz que se faz uma lei, e o aeroporto avança, e as Câmaras já não piam.

O ministro Santos é o dono da liberdade, o pesadelo dos gestores e o ferrabrás dos autarcas. É tudo em nome do progresso.

Pena é o ministro Pedro Nuno Santos ter vendido o Porsche 911 que guiava, comprado por ele próprio ou o seu pai, industrial e capitalista. É pena tê-lo vendido só quando chegou a secretário de Estado no primeiro governo de Costa, e só depois de o Porsche ser notícia. Pena ter compreendido só então que o Porsche era «um mau sinal»; pena só então ter achado que não era «coerente (…) com a forma como quero estar na política».

O ministro Pedro Nuno Santos seria membro celebrado de qualquer governo soviético. Deste governo também. E sem dúvida que obteria os resultados correspondentes. Como este governo. E agora, que já não tem Porsche, está livre para impor coerentemente o seu conceito aperreado de liberdade e fazer como os socialistas soviéticos. A coisa vai-lhe bem a carácter.

A pobreza e o carácter

O Dr. António Costa chegou ao governo prometendo reverter as medidas do Memorando de Entendimento que o governo a que pertencera do partido a que pertence assinara ainda no outro dia, para salvar Portugal da bancarrota que o governo a que pertenceu do partido a que pertence tinha causado. O Dr. António Costa quebrou muros: salvou-se a si próprio do esquecimento, salvou PCP e Bloco de Esquerda dos horrores previsíveis de uma economia funcional, formou com eles uma maioria salvífica, e dedicou-se a pagá-la revertendo as reformas modestas que tinham arrepiado caminho no défice orçamental, no défice da balança comercial e na despesa corrente alucinada. Depois de formado governo com todos os que, distraídos como ele, não vislumbraram na governação de Sócrates alguma coisa de questionável ou promissora de desastre, meteram todos mãos à obra.

Os criados identificam no Dr. António Costa um traço forte de carácter: dizem que é hábil. Habilidoso, o Dr. António Costa sabe que, sendo verdade que os portugueses aprendem e entendem muito pouco, no entanto existe o risco de terem compreendido alguma coisinha pouca, como essa de que contas desvairadas são eles que acabam a pagá-las. De maneira que o Dr. António Costa disfarçou as contas habilidosamente. Disse que já não havia austeridade, enquanto a mantinha [e os criados aplaudiram]. Disse que havia um superavit orçamental, enquanto o ministro das Finanças escondia o défice debaixo do caos do SNS, das despesas por pagar, do investimento zero, dos resultados negativos dos transportes, da falta de meios na educação e nas polícias, e de outros calotes diversos [e os criados aplaudiram o momento «histórico»]. Disse que os impostos baixavam, enquanto eles batiam recordes.  Disse que Portugal estava agora fantástico, e os emigrantes regressando, enquanto a fuga de cérebros e competências prossegue a todo o pano [embora os criados nunca mais vislumbrassem mães chorosas nos aeroportos]. Disse que a dívida pública diminuíra (em percentagem do PIB, era esse o truque) enquanto ela subia de 249,1 mil milhões para 249,7 mil milhões de 2018 para 2019, e o endividamento da economia aumentava 3,1 mil milhões para 721 mil milhões. Disse que Portugal crescia mais do que a média europeia (mais do que Alemanha e outros países ricos, é esse o truque contabilístico que os criados aplaudem), e esqueceu-se de dizer que Portugal já foi ultrapassado em riqueza por República Checa, Estónia, Lituânia, Malta, Eslovénia e Eslováquia. E que em breve será ultrapassado pelo resto dos países da União Europeia, porque a taxa de crescimento de Portugal foi de 2% em 2019, e será de 1,7% em 2020 e 2020, enquanto que os sete países que nos deixarão para trás chegarão a crescer o dobro: Bulgária (2,5% em 2019;  2,1% em 2020;  2,2% em 2021); Grécia (2,2%; 2,4%; 2,0%); Croácia (3,0%; 2,6%; 2,3%); Letónia (2,1%; 2,3%; 2,4%); Hungria 4,9%; 3,2%; 3,8%); Polónia (4,0%; 3,3%; 3,3%); e Roménia (3,9%; 3,8%; 3,5%).

O atraso acentua-se, mas a geringonça serviu a todos. A Costa que ficou, ainda que por poucochinho; ao PCP, porque salvaguardou sindicatos e respectiva receita; ao Bloco, que conseguiu mais um tempo de evangelização e uma ou outra fractura na sociedade cristã e na economia de mercado; e mais ao PAN, agradecido pelos cãezinhos e a sua própria importância.

Todos eles, agradecidos pela hipótese de sobrevivência, assentiram com a cabeça a tudo, e tudo engoliram – austeridade, aumentos de impostos, destruição do SNS, regras de Bruxelas, manobras da OTAN, limites de défice, tectos de salários, ausência de investimento público, aumentos salariais de 1 euro, baixas de consumos indispensáveis de 2 cêntimos, … o que fosse preciso.

Sorrateiramente, habilidosamente, Portugal foi empobrecendo relativamente, e foram enriquecendo os restantes países da EU, alguns dos quais já conheceram as maravilhas do socialismo e não têm saudades delas.

Mas, com a marca de carácter que imprimiu na obra do seu primeiro governo, o Dr. António Costa conseguiu, por fim, ser eleito.

Ilusões e carácter

Uma senhora da Moody`s interroga-se, coitada: «Mas porque é que Portugal não cresce?» O Dr. Costa finge não compreender a pergunta. [E os mesmos criados que publicam essa preocupação, aplaudem a economia do Dr. Costa na página ou peça imediatas. Compreende-se: foram eles que disseram que o défice de Sócrates – e também do seu ministro Costa – caíra a pique um dia antes de saber-se que era de 10%; foram eles que disseram que o FMI já não vinha, enquanto o FMI desembarcava no aeroporto. Está-lhes no carácter.]

Agora, o Dr. Costa vai na vanguarda dos pedintes, perdão, dos amigos da coesão. O Dr. Costa sente alguma urgência, pois sabe que as crises são cíclicas; sabe que a esmola sem fundo do BCE pode acabar um dia; sabe que as taxas de juro em baixas recorde não duram para sempre; e não pode dispensar nem uma parcela dos dinheiros de Bruxelas [e não há dia em que os criados não nos dêem episódios da gesta do Dr. Costa, grande líder mundial, visionário, que lhes dá «acesso invulgar» a reuniões inconsequentes].

E os portugueses gostam? A maioria dos portugueses gosta. Gostam os que estão instalados e os que queriam ser como eles; gostam os criados, esperançosos; gostam os iletrados que levam o crédito pessoal a novos recordes; gostam os rentistas e os assistidos; gostam os conformados que desviam o desespero para a compra de raspadinhas; gostam os absentistas; gostam os iludidos que sonham com os «apoios do Estado» que lhes saem dos próprios bolsos; gostam aqueles que padecem da vocação de pobreza.

São gostos e ilusões persistentes. Afinal, também Sócrates foi reeleito com 39% de votos.  Mas eu apostaria que na soma maioritária dos casos se trata de ilusões e gostos passageiros, mais que traços de carácter.