Quando os portugueses regressarem de férias, e refiro-me até àqueles que pensam já ter regressado, encontrarão um país ferido.
É claro que, como se sabe, quase metade dos portugueses não tem dinheiro para ir de férias (um estudo do Eurostat refere quase 48% da população, sendo a média europeia de 34%), e esses, provavelmente, sentem mais a dor. Um país ferido, desunido na dor, angustiado.
Um país que arde, que observa impotente os dramas, os desleixos, os crimes, sejam eles físicos, económicos, sociais, incrédulo perante a incapacidade de lhes dar resposta. Não convém exagerar, é verdade, mas também é verdade que se sucedem – há anos que se sucedem – acontecimentos inaceitáveis, situações dramáticas, eventos ridículos ou apenas tristes, sem que se chegue verdadeiramente a conhecer as razões, os responsáveis, a pena.
Assiste-se até, com pasmo, à reabilitação política de condenados, cujo direito de voltar ao local do crime não parece ser contestado, como se um pedófilo tivesse direito a voltar a ser professor de crianças pequenas, um alcoólico pudesse tornar ao seu lugar de barman, um carteirista fosse a melhor escolha para guardar um bengaleiro – mesmo depois de cumpridas as eventuais penas.
Ao longo dos anos, dos últimos vários e longos anos, foram conhecidas histórias pouco edificantes de aproveitamento na banca; poucos bancos escaparam à depredação provocada por gestores hábeis em gerir a coisa própria e desprezar o património alheio, colocado à sua guarda. Nos últimos anos assistimos, com algum pasmo, à falência, intervenção, resolução e venda ao desbarato dos maiores bancos portugueses e, salvo melhor memória ou opinião, contam-se pelos dedos de uma mão os responsáveis condenados – já para não falar da ausência em parte incerta de explicações completas, globais, claras, sobre o sucedido.
Podemos falar de ganância e falta de controlo e regulação? Podemos, claro, mas sem nomes, sem factos, sem sentenças, não havendo por isso garantia de que não volte a suceder.
E aos poucos, um pouco mais nas últimas semanas e meses, o país vai deixando de ser português; assistimos com estupefacção à passagem para mãos estrangeiras de quase todos os activos nacionais. Há década e meia exigiu-se que os centros de decisão se mantivessem em Portugal, e nunca como hoje, quinze anos passados, houve tão poucos activos em mãos portuguesas. E as armas roubadas, afinal eram velhas, afinal estavam verdes, afinal foi tudo só afinal.
O país arde, como sempre ardeu, é verdade, só que mais – e com mais vítimas. Enquanto alguns milhões de portugueses se acantonam à beira mar entregando-se às delícias dos raios ultra-violetas, o interior arde. À beira das ondas, do cristalino oceano azul, acotovelam-se gentes de mãos na anca ou braços cruzados, em grupos, a comentar as chamas da província, nas beiras, nas aldeias, como se fosse noutro planeta. E elogiam, honra lhes seja, a coragem sem mácula dos bombeiros, evocando a injustiça dos deuses.
Andamos com azar, é certo, quando um carvalho centenário cai sobre uma multidão incrédula, sem gritar guarda; quando um helicóptero com um herói dentro faz o último voo; quando duas pessoas, gente que agora dizemos com sinceridade que gostávamos de ter conhecido, numa viagem banal, a dois, avó e neta, encontram a morte no local mais improvável, as ramblas catalãs, às mãos de seres que perderam o direito de ser qualificados como humanos.
Azar, claro, e contra a má sorte não há sorte que valha. Mas o azar, sabe-se, anda de mão dada com a falta de planeamento; com a inexistência de prevenção; com a escassez dos recursos necessários; com a estupidez. Temos azar, mas temos muitas vezes falta de planeamento, de prevenção, de recursos; sobra, infelizmente, a estupidez.
Há algumas semanas escrevi um texto sobre o que poderiam ser os efeitos de um terramoto catastrófico em Portugal, com Lisboa como foco principal. A resposta variou entre a indiferença e a ironia, tendo um leitor sugerido que fosse “molhar o pé”. Hoje, após um ligeiro tremor ter assustado milhares de pessoas em Lisboa, e de um terramoto inferior a 3 na escala de richter ter morto gente em Itália, leitores recordaram-me esse texto. Pois é, mais vale rir e nadar à beira mar do que prevenir, mas isso já sabemos, esperando que “eles” nos protejam, sem saber que eles somos nós, todos nós; quando contar, o que agora não tivermos feito cairá sobre as nossas cabeças.
E não será azar.
Quando os portugueses voltarem de férias, Portugal estará mais pobre, mais negro, mais seco, mais ferido, mais triste.
Nada que o frenesim da rentrée, o fim do calor que apaga os incêndios, a discussão política, o recomeço da bola (já recomeçou), não resolvam. Lá vamos, cantando e rindo…