A nossa democracia atravessa tempos de grande instabilidade devido a diversos fatores, dentro os quais, a fragilidade dos pilares do Estado Social, como a saúde e o sistema de pensões, o modo abrupto como o anterior governo saiu de funções ou ainda o crescimento do Partido Chega que, alcançando a marca de 50 deputados, ameaça revirar o paradigma partidário português.

Perante esta realidade, mais que nunca, a classe política é chamada a prestar serviço acima das suas pretensões partidárias, contudo observamos o oposto.

As instituições são fundamentais à estabilidade democrática, mas de pouco servem, se em última instância estas são reguladas pelos homens. A sua vontade é primordial e durante anos o regime assentou na convergência entre os homens, que não se cingindo às normas escritas, dialogavam acordos saudáveis que priorizavam o interesse nacional. Os 4 anos da governação de António Guterres, sustentados pelo Partido Social Democrata, foram exemplo deste espírito partilhado. Certo é que os tempos mudaram, existe uma degradação inquestionável do caráter político, o que fica claro quando até para a eleição do Presidente da Assembleia da República se gera uma “crise”. Esta prática, que outrora era símbolo de respeito e cortesia entre partidos para assegurar o regular funcionamento da Assembleia, hoje é alvo de tricas entre os mesmos. Mas como chegamos a este estado?

Os fatores que levaram à instabilidade democrática, como os referidos inicialmente e a falta de moral política complementam-se, como uma bola de neve montanha abaixo. O primeiro sinal de quebra política foi a famosa “Geringonça”, em 2015, algo que para o comum eleitor se tornou aceite, e era algo impensável anios antes. Os partidos radicais não eram, independentemente das circunstâncias, tidos em consideração para garantir a governabilidade, prática que estava plenamente estabelecida entre os partidos ao centro do espectro político. Ao ser aberto o precedente, gerou-se desconfiança e dificilmente se recuará desde novo status quo instaurado.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A situação agravou-se com as recentes escolhas para a Presidência da Assembleia da República, cargo habitualmente exercido por alguém consensual e imparcial entre as forças partidárias. No entanto, as últimas opções para o cargo foram um tanto quanto questionáveis, dada a tradição. Em primeiro lugar Ferro Rodrigues, figura pouco consensual e demasiado controversa para o costume que vigorava, seguido de Augusto Santos Silva, que devido aos episódios com o Partido Chega teve a sua imparcialidade extremamente questionada em praça pública, pondo em causa a credibilidade e confiança do posto que ocupava. A cereja no topo do bolo foi a recusa do Partido Socialista em eleger o candidato do Chega a Vice-presidente da Assembleia da República, arrasando a tradição democrática de os quatro partidos mais votados assumirem as Vice-presidências.

O resultado destas sucessivas decisões contra-corrente foi a não eleição de José Aguiar-Branco, figura ideologicamente centrista e que não suscita desconfianças curriculares, não havendo portanto motivos de força maior que justificassem o sucedido, senão interesses partidários.

Os políticos portugueses tornaram a democracia num “vale tudo” institucional onde, desde que não haja uma norma proibitiva escrita, qualquer prática é válida mesmo que seja para proveito próprio. Sem as virtudes da racionalidade humana, a moralidade, a confiança ou um simples manter de palavra, a classe política são bárbaros amarrados por papel. Perdeu-se o costume e a tradição, cruciais à estabilidade institucional e estamos a sofrer as consequências disso. Viveremos nesta realidade até à desconfiança total, inclusive das normas escritas, ou até alguns sensatos restaurarem as relações de respeito fundamentais à democracia.