Quer-se alimentar um conjunto de seres humanos num campo de refugiados ou um conjunto de sobreviventes de uma guerra, espalhados por locais pouco aprazíveis e cenários devastados? Quer-se rastrear uma população depauperada por flagelos de doença e fome para providenciar ajuda humanitária? Quer-se combater, com programas médicos e alimentares, alguns dos martírios da humanidade?
Até há bem pouco tempo a forma quase única de o fazer era montar uma cadeia de abastecimento que providenciasse a entrega num ponto central de medicamentos e de alimentos para que as populações a eles pudessem aceder. A forma de ajuda seria quase sempre muito mais massiva, central e construindo cadeias de abastecimento humanitárias, de raiz, para o efeito. As pessoas que chegassem a estes locais seriam (e são) pessoas quase sempre em grande carência, senão física certamente psicológica. Um ponto central, ou alguns pontos centrais, seriam alimentados à retaguarda por um conjunto de processos que tratariam de levar os produtos (alimentos, medicamentos e/ou consumíveis) de um conjunto de origens a um ou poucos destinos de forma controlada e massiva.
Podiam ser recolhidos produtos algures numa campanha de ajuda (inicialmente de forma descentralizada), posteriormente, esses mesmos produtos seriam armazenados e viajariam até ao destino. Sendo que o destino seria, quase sempre, um local central.
Se se quisesse, ao invés de levar tangíveis a pessoas – pensando numa cadeia de abastecimento com recolha para um centro, depois transporte e posterior armazenagem também num ou em poucos pontos de distribuição – providenciar antes verbas a essas pessoas de forma que permitissem aquisição de produtos nas já existentes cadeias de abastecimento talvez não fosse uma ideia disparatada. Implicaria em vez de recolher donativos em géneros recolher donativos em dinheiro. Em vez de montar uma cadeia de abastecimento para o efeito poderiam aproveitar-se as cadeias de abastecimento já existentes. O dinheiro recolhido seria distribuído pelas populações no sentido de as ajudar a comprar alimentos e/ou medicamentos de primeira necessidade.
Pergunta: mas existirão cadeias de abastecimento em zonas depauperadas e flageladas que continuem operacionais? Não. Porém, os campos de refugiados são normalmente localizados já fora das zonas de maior perigo e flagelo, em territórios operáveis, e onde as pessoas em sofrimento são acolhidas. Nesses locais ou próximo já existem, usualmente, elementos finais de cadeias de abastecimento a operar (mercados, lojas, farmácias comunitárias). Podem não estar habituados a ter a procura mais intensa que possa advir da localização próxima de um campo de refugiados. Mas os princípios básicos e o funcionamento estarão assegurados. Assim, os refugiados iriam “às compras” nessas zonas (e lojas e mercados) que os acolheram, possibilitando-lhes assim uma procura na recuperação de condições de vida dignas que perderam. Mas, para irem às compras precisariam de dinheiro…
…Ora, a necessidade de dinheiro leva-nos a pensar em duas soluções.
Uma, as pessoas vão a um banco local e as entidades que ajudam transferem para milhares de contas bancárias o dinheiro que essas pessoas carenciadas irão necessitar. O sistema é pesado, lento, sujeito a erros, com inúmeros crivos de compliance, gerador de inúmeras filas de espera, muito caro, e, paralelamente a tudo isto, pouco apelativo para quem já está em sofrimento. Portanto, a passagem por um agregador do tipo bancário pode ser evitável (os bancos terão com isto – e muitos outros sistemas de pagamentos e o mundo fintech – um determinante central para se reinventarem).
Outra, as pessoas são identificadas e rastreadas e usam smartphones para receber chaves únicas privadas que os identificam. Dir-se-á que não existem smartphones em campos de refugiados. Mentira. Hoje existem em todos os lados, mesmo em campos de refugiados e até em zonas depauperadas. Quem ajuda (a entidade ou entidades) não transfere nada para nenhum banco. Manda, sim, códigos únicos para as pessoas carenciadas e que depois são lidos e “reconciliados” nas lojas e farmácias e mercados locais. Estes últimos entregam produtos em troca de códigos e de comunicação confiável (criptografada) que afasta erros, falsas identidades, lentidão, burocracia e mais sofrimento.
Tudo isto para dizer que se um campo de refugiados tiver 5.000 pessoas não se vão abrir 5.000 contas bancárias. E se os fornecedores locais forem 10 existem apenas pagamentos a ser feitos a estas 10 entidades para abastecerem as referidas 5.000 pessoas carenciadas. Estamos a falar apenas de códigos já que as pessoas carenciadas não chegam a receber dinheiro.
No momento da transação há a “reconcilização” de uma mensagem um para um (vendedor-recebedor) que descentraliza por completo a necessidade das cinco mil contas e, igualmente, da cadeia de abastecimento a construir com alimentos entre uma origem e um destino. Estes são os benefícios que se podem assumir ser possíveis com uma tecnologia como Blockchain.
Mas deixemo-nos de hipóteses. Isto que descrevo já existe. E já foi experimentado e com resultados interessantes. As Nações Unidas (programa Building Blocks) experimentaram-no com sucesso no campo de refugiados de Azraq, na Jordânia, sendo a tecnologia base Blockchain. Adicionalmente, usou-se informação biométrica (neste caso scannando o olho) para identificação das pessoas envolvidas. Numa Síria em conflito os refugiados foram acolhidos na Jordânia e aí ajudados por cadeias de abastecimento já estabelecidas e não necessariamente específicas para o efeito (foram usados cerca de 200 pontos de venda já em operação).
Mais, não são feitos pagamentos às pessoas carenciadas mas usada tecnologia Blockchain para transferência de códigos entre as Nações Unidas e os refugiados. A lógica da tecnologia permite redesenhos no próprio sistema físico pelo que não é de surpreender que muito do que se vai vendo e implementando venha a impactar o desenho de futuras soluções de cadeia de abastecimento.
Uma conclusão parece evidente: Não é seguro que a Blockchain altere por completo o desenho de cadeias de abastecimento ou mesmo ponha em causa uma lógica de cadeia de abastecimento central na medida em que os benefícios em custo se afiguram gigantes para os operadores ao praticarem centralização física: em stock de segurança, em stock total, em pessoas, em contactos, em movimentos, em visibilidade, enfim, numa séria de características difíceis de perder. Mas pode ser relativamente seguro que a Blockchain altere alguns desenhos e algumas práticas. E sua lógica, essencialmente descentralizada, faz-nos pensar quais os impactos que poderá ter no desenho futuro de outras cadeias de abastecimento.
Entram nesta equação (para pensar), claro está, sectores como o retalho, a indústria de fast moving consumer goods, a eletrónica de consumo, a automóvel, a farmacêutica, e tantas e tantas outras indústrias que usam lógicas de cadeias de abastecimento centrais. Ou seja, neste momento praticamente todas as indústrias sem exceção. Dá no mínimo para pensar.
Professor Catedrático, NOVA SBE – Nova School of Business and Economics; crespo.carvalho@novasbe.pt