A subida do populismo nas democracias liberais ocidentais tem sido motivo de surpresa para a comunicação social e para os comentadores tradicionais. Parece desafiar o bom senso e os valores das nossas sociedades que ideias aparentemente rocambolescas obtenham votos suficientes para ganhar eleições e consultas populares. Mas esta surpresa reflete uma preocupação mais profunda. Como podem surgir estes movimentos, partidos e políticos populistas nas democracias liberais representativas, onde prevalecem os valores que defendemos, em particular os valores da liberdade e da tolerância? Na semana em que assistimos, confusos, à aparente contradição do início do “Brexit” e das celebrações dos 60 anos da União Europeia, em que opomos o populismo de alguns políticos europeus marcadamente anti-UE à construção Europeia, surgem dúvidas legítimas: qual é o papel dos populismos nesta mudança? Quais os problemas que eles revelaram? E, mais importante, qual poderá ser a resposta para continuar a construir uma Europa em paz?
1. O que é o populismo
Nos últimos doze meses, o número de resultados eleitorais e de consultas populares que surpreenderam a comunicação social “mainstream” a nível mundial alertou as sociedades mais avançadas do mundo ocidental de uma forma especialmente expressiva para o fenómeno do populismo. Os resultados dessas eleições e consultas, apesar de serem classificados genericamente como populistas, refletem escolhas políticas muito diferentes, o que demonstra a dificuldade da definição do termo populismo. Nesta secção identificamos o populismo como uma ideologia de baixa densidade, que aparece da direita à esquerda do espetro político, opondo o povo à elite e assumindo-se como intérprete da vontade comum ou vontade geral.
Uma análise ao motor de pesquisa da internet Google mostra que o número de pesquisas a nível mundial pelo termo “populism” atingiu o seu máximo histórico na primeira semana de fevereiro de 2017, ultrapassando o anterior pico que tinha sido atingido na segunda semana de novembro de 2016. Nos últimos cinco anos, a primeira vez que tinha ocorrido um aumento significativo da busca dessa palavra foi na terceira semana de junho de 2016, quando o número de buscas se multiplicou por quatro, face à média dos quatro anos anteriores. Na terceira semana de março, a busca pela palavra “populism” voltou a dar um salto, embora menor do que tinha sido o salto do início de fevereiro.
Se restringirmos a análise à palavra “populismo” nas buscas feitas em território português, os resultados são sensivelmente os mesmos, apresentando saltos no número de buscas em torno das mesmas datas.
É significativo que estes picos na popularidade dos termos “populism” e “populismo” neste motor de pesquisa tenham ocorrido em momentos eleitorais importantes mas também muito diversificados: em junho, depois do resultado do referendo britânico que defendeu a saída do Reino Unido da União Europeia (“Brexit”), em novembro, depois da eleição de Donald Trump para Presidente dos Estados Unidos, e mais recentemente em fevereiro, depois da inauguração do presidente Trump na Casa Branca, que ocorreu a 24 de janeiro, e algumas semanas antes das eleições holandeses.
Esta diversidade sugere que o populismo representa, entre a população que acede a estes instrumentos, um fenómeno relativamente lato que engloba eventos bastante diversificados, evidenciando a dificuldade que é definir o populismo.
Face à diversidade de movimentos, de partidos e de políticos agora e no passado que são considerados populistas, Cas Mudde e Cristobál Kaltwasser num livro recente, Populismo – Uma Brevíssima Introdução, identificam o populismo como uma ideologia pouco densificada em termos de visão sobre o funcionamento do mundo e das sociedades, mas que usa uma ideia relativamente simples para construir um discurso: o confronto entre o povo considerado puro e a elite corrupta. Normalmente a definição de povo incorpora três elementos: o povo soberano como governante último num contexto democrático, o povo como o conjunto de cidadãos comuns, isto é afastado das decisões de política ou dos grandes grupos económicos e finalmente o povo como etnia ou cidadania específica. A elite é definida simetricamente como a classe próxima do poder económico e político, que age ignorando os interesses do povo soberano e defendendo os interesses da sua classe e do estrangeiro.
O populismo propõe-se também interpretar a vontade geral do povo. Jean Jacques Rousseau distinguiu a vontade geral, que é a vontade que resulta do interesse comum de uma comunidade, da vontade de todos, que é a soma das vontades individuais. Os populistas interpretam-se como sendo os únicos que apreendem essa vontade geral, da “maioria silenciosa”.
2. Emergência do populismo nas democracias liberais
Os movimentos, partidos ou líderes populistas têm um lugar nos regimes não democráticos, como impulsionadores de libertação de um poder autoritário, mas o seu papel é mais difícil de apreender nas democracias liberais onde a liberdade de expressão e de ação estão asseguradas e existe uma multitude de partidos em competição para representarem os interesses da maioria.
As democracias ocidentais liberais são sistemas de organização política caracterizados por um Estado de direito, eleições livres e competitivas entre diferentes partidos e representantes e separação dos poderes executivo, legislativo e judicial. Este sistema de competição entre candidatos, em que os governantes são regularmente submetidos ao teste das eleições e cujo poder é frequentemente limitado pela limitação de mandatos, deveria permitir a escolha dos melhores políticos, entendido como aqueles que melhor representam a vontade da maioria, dentro dos valores e dos princípios de mais longo prazo que estão inscritos nas leis e, em particular, na constituição. Se os melhores candidatos ganham eleições, o que explica então que se tenha desenvolvido um descontentamento suficientemente forte para permitir a emergência de líderes populistas que o contestam?
Podemos distinguir duas tipologias de insuficiências das democracias ocidentais liberais: insuficiências conjunturais, isto é que decorrem de uma circunstância particular e temporária que eventualmente desaparecerá, e insuficiências estruturais, que resultam da natureza do próprio sistema político. As primeiras representam um risco para as democracias e uma oportunidade para os populistas se forem suficientemente profundas e duradouras. As segundas representam um pano de fundo que se poderá ter intensificado nas últimas décadas e que explicam que este fenómeno esteja sempre presente, possivelmente com mais intensidade nos últimos anos.
A crise económica e financeira da última década [1], exemplo de insuficiência conjuntural, foi terreno fértil para movimentos populistas, tal como o movimento “Occupy Wall Street” nos Estados Unidos que contestava o apoio ao setor financeiro após a falência do banco Lehman Brothers. Na concorrência de dois interesses aparentemente antagónicos que eram a necessidade de preservar a estabilidade financeira (“Wall Street”) e o apoio às pequenas empresas e famílias financeiramente estranguladas (“Main Street”) o movimento populista posicionava-se claramente do lado da “Main Street”. O movimento procurava assim representar os interesses do povo (“Main Street”) que a elite ignorava para servir os interesses dos grandes grupos financeiros internacionais. Era um movimento de alerta para um problema que parecia estar a ser ignorado pela política, mas ao mesmo tempo ignorava o facto da estabilidade financeira ser ela própria do interesse da “Main Street”.
Na Europa, os movimentos, partidos e líderes xenófobos e nacionalistas aproveitaram também a circunstância do aumento significativo da imigração e da vaga de refugiados às portas da Europa para alertarem contra os riscos para a segurança dos cidadãos que resulta da imigração de pessoas com valores diferentes no que diz respeito, por exemplo, ao papel das mulheres na sociedade. No entanto, embora esses riscos existam tenham sido até concretizados, é certo que a maioria dos ataques ditos terroristas nos últimos três anos na Europa (Paris, Bruxelas, Londres) foram perpetrados por cidadãos radicalizados e não por imigrantes legais ou ilegais.
A perceção, real ou não, de corrupção generalizada, seja por políticos seja por outras elites como a elite financeira, são outro fator de descrédito externo das democracias liberais. Se as instituições que devem servir de contrapeso não conseguem evitar a corrupção então os ataques às instituições tornam-se mais justificáveis aos olhos dos cidadãos.
Os movimentos populistas serviram nestes casos para alertar os Governos para problemas que aparentemente estariam a ser ignorados pelos políticos mas é também certo que exageraram esses problemas ou ignoraram que as soluções são muito mais complexas do que as que eles apresentam.
No entanto, mais complicado é o facto de as democracias sofrerem também de insuficiências estruturais. A socióloga francesa Dominique Schnapper no livro L’esprit Démocratique des lois, critica a incapacidade das democracias de obterem os resultados que professam e prometem, por exemplo a lentidão com a qual as mulheres foram e continuam a ser integradas na sociedade.
No campo da economia, as democracias liberais favorecem o multilateralismo, a globalização e o comércio internacional como corolários da liberdade de ação individual. A promessa aparentemente não cumprida seria que esse processo conduziria a maior prosperidade e a maior diversidade para os consumidores, a preços mais baratos. Essa promessa foi cumprida em parte. Não há grandes dúvidas entre os economistas que a globalização tem um efeito globalmente positivo no crescimento económico e na redução da desigualdade. Por exemplo, o Banco Mundial identifica que o período desde 1990 registou a maior redução da desigualdade de rendimentos entre países desde a revolução industrial, movimento que o Banco Mundial associa ao comércio internacional. No entanto, durante o mesmo período, a desigualdade dentro de fronteiras aumentou em vários países avançados e em vias de desenvolvimento. O período de crescimento económico robusto que antecedeu a crise na maioria dos países permitiu compensar em parte esses efeitos negativos, que a crise veio mais tarde revelar.
Nas democracias ocidentais os principais perdedores da globalização foram as populações com trabalhos menos qualificados que perderam os empregos a favor dos empregos em países com salários mais baixos. Por exemplo, nos Estados Unidos este fenómeno revelou-se no aumento da desigualdade medida pelo índice de Gini que subiu de 36 para 39% entre 2001 e 2012 [2]. Neste caso, a promessa da globalização de maior prosperidade para todos que é aceite senão promovida pelas democracias liberais, falhou também face a uma parte da população, a tal ponto que alguns analistas consideram que poderá ter sido uma importante explicação para o sucesso de Donald Trump nas eleições (David Autor, 2016).
Mas a crítica mais complexa resulta de a própria democracia liberal poder gerar instabilidade. Com efeito, o sistema democrático pode ser corrompido se os homens que são por ele governados já não se conduzem segundo os princípios que o organizam. Shnapper pergunta-se se as democracias liberais não têm em si as sementes da sua própria destruição por excesso, por exemplo pela confusão que existe entre liberdade e libertarianismo. Numa democracia liberal os indivíduos aceitam a autoridade do Estado, das leis, da constituição, sabendo que podem regularmente sancionar ou rejeitar essas leis através do processo democráticos e sujeitando-se à vontade da maioria. A crítica é por isso saudável e efetiva. Mas o crescente individualismo das sociedades modernas associado à defesa das liberdades da democracia liberal pode conduzir à perceção de que é possível e até desejável a eliminação dessas instituições. Nesse caso, facilmente o desejo de independência total se transforma num ataque aos contrapesos das democracias liberais, que é a raison d´être do populismo.
Finalmente, Peter Mair refere o crescente afastamento entre os representantes e representados. Um caso muito patente é o da União Europeia. Existe uma perceção de que é um conjunto de instituições pouco democrático e afastado das reais preocupações do povo. Na realidade essa perceção é muito distorcida, já que a maioria das decisões importantes é efetivamente tomada pelos chefes de Estado ou de Governo dos Estados-membros no Conselho. Mas a conciliação de interesses nacionais tão diferentes conduz a soluções que são percebidas pelos cidadãos como não sendo adaptadas às suas reais necessidades.
3. Riscos e soluções
Ao enfrentar este novo mundo em que a ordem mundial está em mudança profunda e em que a UE inaugura um processo de estreitamento da sua estrutura política, a nossa reflexão sobre a Europa não pode deixar de passar por uma visão crítica das instituições, não para fazer tábua rasa do passado, mas para promover a mudança dentro da constituição que é a génese das democracias liberais. Políticos, cidadãos, movimentos civis têm de refletir sobre as nossas democracias e aceitar o risco de tomar decisões para defendê-la. O risco de aceitar as responsabilidades, o risco de participar ativamente em movimentos de cidadãos e em movimentos políticos, o risco de funcionar com as instituições que existem e de pensar cuidadosamente nas que devem ser preservadas, nas que devem ser mudadas e nas que devem ser eliminadas.
A União Europeia faz agora seis décadas, é uma senhora com experiência e sabedoria, com defeitos também. Os seus resultados em termos de paz, de libertação e de prosperidade são inegáveis. Na hora de pensarmos na mudança, resistamos à tentação de tudo destruir ou de fazer fugas para a frente. A gestão da mudança requer prudência, discernimento e ponderação. E depois de tudo pensado muita coragem.
Deputada do PSD