No início do mês de novembro na conclusão da Escola de Escritores, um dos ciclos de programação que faz parte do recém-criado Centro Internacional de Dramaturgia de Guarda, tirei uma fotografia com John Eisner, que orientava as sessões de escrita. O John foi o fundador da Lark, onde desenvolveu durante 37 anos programas de dramaturgia em Nova Iorque e por esse mundo fora, sendo corresponsável pelo aparecimento e a consagração de alguns dos nomes mais importantes da dramaturgia norte-americana. Dos últimos cinco prémios Pulitzer em Teatro, quatro foram atribuídos a pessoas que trabalharam com ele.

O Eisner tem quase dois metros de altura – e eu, na fotografia, olho para ele, 30 cm abaixo, como que revelando o meu espanto perante essa diferença de estatura. Alguém sugeriu fazer uns bonés ou umas camisolas e usar o slogan, que dá o título a este texto. É uma hipótese ainda em aberto.

O autor com John Eisner

Na verdade, o espanto era outro. Tinha chegado ao fim uma semana de partilha diária de textos, na sala de ensaios do Teatro Municipal da Guarda, onde Joana Bertholo, José Gardeazabal, Rajiv Joseph, Sebastião Braga e Jacinto Lucas Pires, orientados pelo John Eisner, foram escrevendo e reescrevendo páginas e páginas, depois lidas por todos em voz alta.

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Cada um desses textos dará origem a uma nova criação – e essa dinâmica a que assisti, está profundamente ligada ao facto de estarmos naquele lugar, juntos, com um propósito comum. Essa simples presença e a nossa interação deu personalidade própria ao espaço onde estivemos, dando sentido à sala de ensaios e justificando a existência do edifício, o seu fim maior, na relação com os habitantes da Guarda.

Isso fez-me regressar 10 anos atrás, quando se preparava a abertura de Guimarães 2012 e se concluía um processo de anos de preparação do qual fiz parte desde 2008.

O que surpreendia na vivência de Guimarães nesses anos era uma consciência comum de uma equipa que pensava e executava a política cultural da cidade, com um sentido de envolvimento em algo maior, e usando palavras que estão aparentemente gastas, mas que temos de recuperar: uma preocupação com uma ideia de cidade e de como a cultura pode ser esse elemento unificador e diferenciador.

Nesses tempos demos ainda mais um passo, que foi colocar a criação artística contemporânea como elemento central da dinamização de Guimarães.  O meu papel, inicialmente ligado à direção artística do Teatro Oficina, foi colocar a companhia a trabalhar como uma estrutura de reportório: inspirados pela ideia de estúdio de teatro que o Teatro Nacional São João tão bem tinha feito nos anos de direção de Ricardo Pais, contratamos professores para trabalhar com um vasto conjunto de atores – e criadores portugueses e estrangeiros para os dirigir – alternando textos de novas dramaturgias com textos de William Shakespeare.

Uma escolha clara, entre outras possíveis – e uma ideia simples: qualquer teatro de média dimensão de uma cidade deve ter uma estrutura de criação associada. Só assim pode desenvolver uma personalidade própria, que cresce pela dimensão do reportório e as escolhas feitas dentro da criação, que depois contagiam a programação do Teatro (e vice-versa), abrindo possibilidades de relação com diversas companhias e provocando a multiplicação de públicos.

Mais tarde, quando me foi também atribuída a função de programador das Artes Performativas da Capital Europeia da Cultura Guimarães (CEC) 2012, mantive o mesmo pensamento. Desafiamos as companhias a fazerem residências em Guimarães e a trabalharem a partir do território.

Foi um programa talvez menos espetacular, mas uma vez mais a ideia era maior do que nós, era um convite que trazia a ideia de uma cidade habitada pelos artistas, durante o ano de 2012 e nos anos seguintes, para os quais já estávamos a trabalhar. Foi por isso que também, ainda dentro deste programa, se investiu num centro de residências em Candoso, ou na caixa negra da Fábrica Asa.

Foram escolhas, que tiveram coisas boas e outras menos boas, mas que foram coerentes com a política que a cidade tinha adotado nos últimos anos e nas intenções manifestadas para o futuro.

Aconteceram muitas coisas nos últimos dez anos, mas desde longe é com alguma tristeza que vejo o Teatro Oficina reduzido a nada ou quase nada, sem ver que esse projeto tenha sido substituído por alternativas igualmente fortes. Parece-me que isso provocou uma perda de personalidade desses espaços de criação em Guimarães e a um abatimento da singularidade do projeto cultural da cidade.

Partilha de textos na sala de ensaios do Teatro Municipal da Guarda

Esta reflexão vem a propósito do futuro, não é um lamento em relação ao passado. Neste momento uma dezena de cidades começaram processos de candidatura para que uma delas seja eleita Capital Europeia da Cultura em 2027.

Esta experiência de Guimarães merece ser olhada com especial atenção por quem prepara essas candidaturas, que podem e devem ser encaradas como uma bela desculpa para pensar em conjunto o desenvolvimento de cada cidade, pensando na personalidade que se quer para os edifícios e estruturas artísticas que já existem, na criação de condições para a fixação de artistas, na profissionalização das associações culturais locais e numa relação com outros projetos internacionais de outras partes do mundo.

Ao mesmo tempo que isso é feito – e regressando à ideia de personalidade, ou também de uma competitividade positiva –, se a Guarda, por exemplo, resolveu preencher uma lacuna nacional, assumindo um Centro Internacional de Dramaturgia, ou apoiando o projeto da Orquestra Filarmónica, que outras lacunas é que as demais cidades podem preencher? Onde é que pode abrir um novo Centro Coreográfico? Ou um Centro Nacional para a nova Criação Musical Contemporânea? Que teatros municipais devem acolher durante quatro anos novas estruturas de criação?

Perguntar tudo isto é o mesmo que perguntar que cidades queremos ter daqui a 10 anos e que papel é que cada cidade pode ter numa ideia de transformação social e política que todos desejamos. Ou deixamos para os outros essa possibilidade de encontrar as respostas para as questões que precisamos de ver respondidas para o futuro das nossas comunidades? Ou continuamos a achar que não é nestes espaços de encontro coletivo que se iniciam estes processos de transformação? Ou vamos continuar a importar essas soluções?

Seria ótimo olhar para os Teatros deste país e ver uma programação diversificada, fora de uma ideia de pensamento único, ver os Teatros no seu dia-a-dia, habitados por artistas e não apenas pelos indispensáveis técnicos e funcionários. Essas casas são o lugar do encontro entre artistas e o público, são centros de comunidade, onde se pode provocar o espanto e talvez transformar as nossas cidades. Sem grandes manias de grandeza, aceitando fazer à escala, de menos para mais, reconhecendo a nossa grandeza ao olharmos o outro.

Com ou sem bonés, é possível fazer de Portugal um país maior, pensando a partir da ideia do local, mas sem medo de ser grande, criando comunidades que estão num diálogo com o mundo.

Esse movimento, que já vai acontecendo em exemplos que se devem multiplicar, como o Coletivo Fantasma em Torres Vedras, o Bando à Parte em Guimarães, ou com a Terceira Pessoa em Castelo Branco – entre muitos outros exemplos, felizmente – é algo que estamos também a tentar replicar na Escola do Largo, em Lisboa. E é esse mesmo espírito que pode fazer as verdadeiras capitais de cultura, de norte a sul, do interior até ao litoral.

Acabado o concurso, seria ótimo ver que cada uma dessas cidades aproveitou para criar projetos que contribuem para o desenvolvimento do país, independentemente da felicidade e da festa dos eventos ocasionais.

Sim, seria de tirar o boné.